|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Os Pássaros (versão brasileira)
Policiais ambientais encontraram
168 pássaros com um passageiro de
um ônibus de turismo em Arujá, na
Grande São Paulo. Folha Online,
4.fev.2004
"O senhor quer saber como é que estes 168 pássaros estão aqui, junto comigo.
Bem, eu posso lhe contar, sargento. Sei que o senhor não vai acreditar -no seu lugar eu também
não acreditaria- mas o que
posso fazer, se a história é
verdadeira?
Tudo começou na minha infância. E tudo começou com meu pai.
Era um bom pai, trabalhador, dedicado. Não tinha vício algum;
não bebia, não jogava, não fazia
farra com mulheres. Seu único vício, se é que se pode chamar assim, era o cinema. Se pudesse, iria
todas as noites. Acontece que minha mãe não gostava de filmes,
preferia novelas de TV, o que deixava meu pai muito magoado.
Mas ela o consolava: quando nosso filho crescer, ele vai lhe acompanhar ao cinema, você vai ver.
O filho era eu. E, desde pequeno,
meu pai tentou me interessar por
filmes. Mas eu era como mamãe:
preferia TV. Nessa família ninguém me compreende, dizia meu
pai desconsolado.
Uma tarde chegou em casa radiante. Naquela noite iriam passar no pequeno cinema da cidade
"Os Pássaros", de Alfred Hitchcock. Um clássico, como o senhor
sabe, que meu pai nunca tinha
visto. Agora, não queria perder
essa oportunidade: era sessão
única. E decidiu levar-me junto.
Fui, resmungando. Eu tinha oito anos, e teria preferido ficar em
casa, brincando com meu joguinho eletrônico. Mas papai acreditava no valor cultural do cinema;
você vai gostar, prometeu, e arrastou-me até o cinema. Sentamos, começou o filme, e logo eu
estava horrorizado, aqueles pássaros malucos perseguindo as pessoas, bicando todo o mundo. Lá
pelas tantas não agüentei: levantei e saí correndo. Meu pai teve de
vir atrás de mim e, por causa disso, perdeu "Os Pássaros". Ficou
furioso. E nunca chegou a me perdoar; três semanas depois teve
um ataque cardíaco e morreu,
ainda jovem.
Desde então, sargento, eu tenho
sido perseguido por pássaros.
É uma coisa incrível. Se atravesso
uma praça, as pombas voejam
atrás de mim, algumas até fazem
cocô na minha roupa. Os papagaios me gritam os maiores desaforos. De vez em quando vejo dois
urubus pousados em cima de
meu carro.
E aí aconteceu o seguinte: eu estava me preparando para embarcar no ônibus, quando veio essa
passarada, esses canários, atrás
de mim. Eu não podia perder a
viagem, era uma coisa urgente. Aí
tive uma idéia. Comprei uma
gaiola. Os canários logo entenderam que, se queriam me seguir, só
podia ser dessa maneira. Entraram na gaiola.
Que eu ia deixar no ônibus. Palavra, era o que eu ia fazer. Ia me
livrar dos canários para sempre.
Mas agora o senhor me prendeu...
Está bem, me leve para a prisão,
me engaiole. Mas prepare-se: o senhor vai ter de arranjar lugar para 1 milhão de pássaros."
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
Texto Anterior: Rio sobe e inunda cidade pernambucana Próximo Texto: Consumo: Estudante faz negociação, mas Credicard descumpre acordo Índice
|