São Paulo, segunda-feira, 09 de fevereiro de 2004

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MOACYR SCLIAR

Os Pássaros (versão brasileira)

Policiais ambientais encontraram 168 pássaros com um passageiro de um ônibus de turismo em Arujá, na Grande São Paulo. Folha Online, 4.fev.2004

"O senhor quer saber como é que estes 168 pássaros estão aqui, junto comigo. Bem, eu posso lhe contar, sargento. Sei que o senhor não vai acreditar -no seu lugar eu também não acreditaria- mas o que posso fazer, se a história é verdadeira?
Tudo começou na minha infância. E tudo começou com meu pai. Era um bom pai, trabalhador, dedicado. Não tinha vício algum; não bebia, não jogava, não fazia farra com mulheres. Seu único vício, se é que se pode chamar assim, era o cinema. Se pudesse, iria todas as noites. Acontece que minha mãe não gostava de filmes, preferia novelas de TV, o que deixava meu pai muito magoado. Mas ela o consolava: quando nosso filho crescer, ele vai lhe acompanhar ao cinema, você vai ver.
O filho era eu. E, desde pequeno, meu pai tentou me interessar por filmes. Mas eu era como mamãe: preferia TV. Nessa família ninguém me compreende, dizia meu pai desconsolado.
Uma tarde chegou em casa radiante. Naquela noite iriam passar no pequeno cinema da cidade "Os Pássaros", de Alfred Hitchcock. Um clássico, como o senhor sabe, que meu pai nunca tinha visto. Agora, não queria perder essa oportunidade: era sessão única. E decidiu levar-me junto.
Fui, resmungando. Eu tinha oito anos, e teria preferido ficar em casa, brincando com meu joguinho eletrônico. Mas papai acreditava no valor cultural do cinema; você vai gostar, prometeu, e arrastou-me até o cinema. Sentamos, começou o filme, e logo eu estava horrorizado, aqueles pássaros malucos perseguindo as pessoas, bicando todo o mundo. Lá pelas tantas não agüentei: levantei e saí correndo. Meu pai teve de vir atrás de mim e, por causa disso, perdeu "Os Pássaros". Ficou furioso. E nunca chegou a me perdoar; três semanas depois teve um ataque cardíaco e morreu, ainda jovem.
Desde então, sargento, eu tenho sido perseguido por pássaros. É uma coisa incrível. Se atravesso uma praça, as pombas voejam atrás de mim, algumas até fazem cocô na minha roupa. Os papagaios me gritam os maiores desaforos. De vez em quando vejo dois urubus pousados em cima de meu carro.
E aí aconteceu o seguinte: eu estava me preparando para embarcar no ônibus, quando veio essa passarada, esses canários, atrás de mim. Eu não podia perder a viagem, era uma coisa urgente. Aí tive uma idéia. Comprei uma gaiola. Os canários logo entenderam que, se queriam me seguir, só podia ser dessa maneira. Entraram na gaiola.
Que eu ia deixar no ônibus. Palavra, era o que eu ia fazer. Ia me livrar dos canários para sempre. Mas agora o senhor me prendeu... Está bem, me leve para a prisão, me engaiole. Mas prepare-se: o senhor vai ter de arranjar lugar para 1 milhão de pássaros."


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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