São Paulo, segunda-feira, 09 de fevereiro de 2009

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MOACYR SCLIAR

Devaneios no aeroporto


Ela se via como uma rica senhora, que estava ali apenas passando o tempo enquanto aguardava o voo


 

Dois turistas alemães foram indiciados sob a acusação de ato obsceno no saguão do aeroporto internacional de Salvador (BA). Os dois ficaram de cuecas no saguão enquanto trocavam de roupa. Após reclamações de passageiros, foram levados para a delegacia. A delegada disse que um dos alemães afirmou não ter se sentido constrangido. "Ele disse que, pelo o que ele vê nas praias, seria normal fazer isso aqui." Folha Online, 4 de fevereiro de 2009

Deportada da Espanha, sem dinheiro e com poucas peças de roupa dentro de um saco de lixo, uma mulher de 32 anos morou, por 18 dias, no aeroporto internacional de Salvador (BA). Cássia disse que deixou a cidade natal há quase três anos para trabalhar como empregada doméstica em Madri. No começo deste ano, o setor de imigração descobriu que ela estava clandestinamente no país e deportou-a para Salvador. Cássia pôde contar com a solidariedade dos funcionários do aeroporto: "Eles me pagavam lanches e deixaram usar um banheiro com chuveiro". Para dormir, usava as roupas como travesseiro e o saco de lixo para forrar o chão. Para passar o tempo, "ficava olhando as vitrines, os aviões, as pessoas. E sonhando". Cotidiano, 4 de fevereiro de 2009

COMO VIKTOR Navorski, o personagem vivido por Tom Hanks no filme "O Terminal", de Steven Spielberg, de repente ela se viu no aeroporto sem saber o que fazer da vida. Ali tinha chegado depois de ter sido deportada da Espanha, mas não era aquela a cidade onde morava -e não tinha dinheiro para viajar até sua humilde casa, a centenas de quilômetros de distância. Os primeiros tempos foram de desespero. Depois, como Viktor Navorski, aprendeu a sobreviver. Os funcionários do aeroporto pagavam-lhe a comida, deixavam que usasse o chuveiro. E dormia no chão: um pouco duro, naturalmente, mas pelo menos estava num ambiente com ar-condicionado, um luxo que nunca conhecera. Ah, sim, e era agradável caminhar no meio daquela gente elegante, era agradável olhar os aviões decolando -e, sobretudo, era agradável devanear.
Devaneava muito, ela. Em primeiro lugar porque não tinha outra coisa a fazer. Depois, porque o ambiente ajudava. Parecia-lhe que estava num outro planeta, muito distante da realidade em que vivera. As belas roupas que via nas lojas, o restaurante, os turistas, tudo aquilo era um sonho. Que um dia teria de terminar, claro; um dia ela voltaria para casa, para a família. Mas enquanto isso não acontecesse, que mal havia em dar asas à imaginação, sobretudo num lugar em que voar era coisa tão natural? Ela se via como uma rica senhora, que estava ali apenas passando o tempo, enquanto aguardava o voo para Londres ou para Atenas ou para Istambul.
Foi então que viu aquela cena bizarra: dois homens falando uma língua estrangeira, os dois de cuecas, trocando de roupa muito animados, como se estivessem no quarto de um hotel. A princípio não quis acreditar; esfregou os olhos -era verdade, aquilo?
Não, não podia ser verdade. Ela estava vendo coisas. E isso significava que, de fato, estava na hora de voltar para sua casinha no interior do Brasil.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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