São Paulo, terça-feira, 09 de abril de 2002

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MARILENE FELINTO

O candidato dos Estados Unidos

Quando estive nos Estados Unidos pela primeira vez, em 1992, fui apresentada, no rol de classificações que moldam o pensamento americano sobre o "outro", como: "mulher, negra e pobre", escritora brasileira convidada para dar um minicurso sobre a "literatura brasileira feminina" na universidade da Califórnia, em Berkeley.
Essa descrição constava da apresentação do curso para matrículas. Foi desconcertante. Na primeira aula, fiz questão de reparar o equívoco: "gostaria de dizer que sou mulher mas não sou feminista, que não me considero negra mas sim mestiça ou miscigenada, como queiram, que não sou mais tão pobre quanto fui na infância e que não gosto de samba nem de futebol".
Foi meu primeiro choque cultural com os EUA. Minha primeira tentativa de dizer que não sou o que eles pensam que somos. As professoras do departamento viraram a cara para mim. O curso foi um fracasso, exceto pelos alunos, que aceitaram a novidade e viraram amigos meus.
Preâmbulo inútil. Só para ilustrar como os Estados Unidos adoram especializações: brasilianistas, colombianistas, qualquer classificação dessas que tentem explicar a eles as diferenças entre o resto do mundo e eles próprios. A palavra "brasilianista" vem, aliás, da inglesa "brazilianist". Foi inventada lá fora.
Nacionalismos à parte, esse detalhe se torna significativo, porém, quando se trata da análise de um "especialista em América Latina" sobre as eleições presidenciais deste ano no Brasil.
Em artigo publicado na Folha domingo último ("A eleição brasileira pode modificar o mapa político da região"), Andres Oppenheimer, correspondente na América Latina do jornal "Miami Herald", descreve o que, aos olhos dos EUA, pode acontecer na América Latina se Luiz Inácio Lula da Silva ganhar a eleição presidencial deste ano.
O que pode acontecer, opinião que Oppenheimer atribui aos "círculos diplomáticos americanos", é uma verdadeira desordem no mapa do continente, definida por: aumento sensível das atuais "dores de cabeça" da administração Bush no continente (Argentina, Colômbia e Venezuela); formação de um "novo bloco globofóbico", encabeçado pelo Brasil, que se oporia ao plano respaldado pelos EUA de criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca); fortalecimento dos laços do Brasil com Cuba e com a guerrilha marxista colombiana.
Ainda que Oppenheimer cite outras opiniões sobre o assunto, como a de "dois ex-funcionários de alto escalão do Departamento de Estado", considerando "que uma vitória de Lula não necessariamente levará a transformações radicais no Brasil ou na América do Sul", o artigo traça um quadro tão obsoleto da realidade política daqui que é risível.
Fora esse linguajar sobre "Cuba" e "guerrilha marxista" lembrar os anos 60 (e o sobrenome do articulista, igual ao dos irmãos Oppenheimer, que inventaram lá a bomba atômica na época), toda a análise dos americanos é um insulto à inteligência de qualquer brasileiro minimamente informado. Fora os erros nos números sobre a rejeição a Lula informados no artigo.
Só revela a prepotência e a esquizofrenia capitalista dos donos do mundo. Ainda que o PT fosse hoje o partido da luta armada, já seria consciente da impossibilidade de se libertar do jugo da globalização, da esmagadora americanização das economias e das culturas do mundo. Quanta arrogância. É terrível viver num país cujos presidentes são sempre os escolhidos dos Estados Unidos.
Ah, antes que eu me esqueça: o artigo dizia que o candidato favorito dos Estados Unidos é José Serra, para quem não sabia.

E-mail - mfelinto@uol.com.br



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