São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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ARTE DA FÉ

Grupo de teatro amador formado por moradores da favela carioca encena peça nas ruas da comunidade na Sexta-Feira Santa

Rocinha reinventa sua própria Via Sacra

Flávio Florido/Folha Imagem
Moradores da favela da Rocinha (zona sul do Rio) ensaiam peça de teatro que será apresentada na Sexta-Feira Santa nas ruas da comunidade


ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

A Rocinha cria e reinventa a cada ano a sua própria Paixão. Desde 1992, um grupo de teatro amador formado por moradores da favela da zona sul carioca encena na Sexta-Feira Santa uma Via Sacra que tem como cenário as ruas da comunidade.
Não se trata, no entanto, de uma Paixão de Cristo nos moldes tradicionais, como as muitas que existem no Brasil. Em cada personagem bíblico retratado, é clara e proposital a referência ao cotidiano da Rocinha.
João Batista, por exemplo, já foi um pai de dois filhos desempregado. Judas já traiu Jesus não por convicção, mas por ter bebido cachaça demais numa birosca. Os soldados romanos carregam fuzis e agem com a mesma truculência que a polícia usa para revistar os moradores. Herodes, por sua vez, tem a mesma insensibilidade demonstrada por governantes que pouco fazem para melhorar as condições de vida da favela.
O espetáculo é livre e democrático. Livre porque cada ator tem liberdade para colocar em seu personagem características próprias. Democrático porque as sugestões e o papel que caberá a cada ator são debatidos pelo grupo, sem influência de nenhuma Igreja. "Aqui tem de tudo. Tem católico, evangélico, espírita, ateu...", diz o diretor Aurélio Mesquita, 40.
Tanta liberdade gera também polêmicas. Mesquita conta que uma das cenas mais fortes que eles já fizeram foi a de Jesus sendo carregado ensangüentado num carrinho de mão. Era uma referência a uma imagem que chocou o Brasil em 2004: a de um suposto traficante morto em confronto com a polícia e que teve o corpo carregado num carrinho de mão.
Neste ano, pela primeira vez, o espetáculo terá patrocínio da Light e do governo do Estado. "Queremos ter cada vez mais incentivos, mas, se não houver, pode ter certeza de que vai todo mundo aparecer para ensaiar", diz o o produtor Renê Mello, 29.
Todas as cenas acontecem nas ruas da favela, num percurso de cerca de três quilômetros. Como não há palco, muitas vezes são os soldados romanos que abrem espaço para a passagem de Jesus. "A gente empurra um pouquinho e vai abrindo passagem", diz o ator e comerciante Edigler Viana, 55, que já interpretou um soldado.
Lucas Valentim, 19, que neste ano interpretará de novo Jesus, diz que o público interage com os personagens. "A gente ouve as pessoas dizendo para os soldados "moço, não bate com força nele"."
A inspiração do soldado feito pelo estudante Charles Damascena, 20, por exemplo, vem dos policiais militares que agem com truculência na favela. "Eu me lembro da forma com que já fui revistado por alguns policiais para fazer meu personagem", diz.
O office-boy Júlio Fernandes, 38, busca inspiração nos políticos para fazer Herodes: "A visão que eu tenho de Herodes é a de um governante insensível e arrogante, como muitos de hoje que não estão nem aí para a favela".
Apesar da pouca publicidade, a Via Sacra da Rocinha vem cada vez mais chamando a atenção fora da favela. Em 2001, por exemplo, a produtora Giros fez um documentário sobre a peça. "Já fizemos uma apresentação numa mansão em Santa Teresa. Hoje vem gente de outros bairros participar do espetáculo ou assistir a peça no dia", diz o produtor.
Na próxima sexta-feira, espera-se que a Rocinha mais uma vez pare para assistir, às 20h, sua própria Via Sacra.


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