São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

Os "planos" de Felipão

Não se preocupe, caro leitor. Não vou meter minha colher no vai-não-vai sobre Romário, nem vou atrever-me a palpitar sobre o trabalho de Felipão. Quero trocar duas palavras com você sobre esta frase, que teria sido dita pelo técnico da seleção na última segunda-feira, depois de anunciar seus prediletos: "Se perder, estou morto, mesmo que levasse Romário".
Comecemos pelo par "Se perder, estou morto", ou, mais precisamente, pelo par "perder"/"estou". Talvez você já tenha ouvido alguém dizer que, em casos como esse, é obrigatório o futuro do presente ("Se perder, estarei morto"). Será que é isso mesmo? Nem pensar! Nem nesse caso, nem em frases como "Passo na sua casa amanhã", que muita gente insiste em dizer que se deve trocar por "Passarei na sua casa amanhã".
No último exemplo, já há marca de futuro no advérbio "amanhã", o que torna possível optar entre "passarei" e "passo". Esta forma, por sinal, confere à afirmação maior dose de certeza.
E o "estou" de Felipão? Entra no mesmo caso. A conjunção "se" e a forma verbal "perder" (do futuro do subjuntivo) já contêm marcas de futuro. Deve-se considerar também o fato de que, com "estou" no lugar de "estarei", o falante aproxima e antecipa a cena.
É bom que fique bem claro que nos dois casos seria perfeitamente possível optar pelo futuro do presente ("Amanhã passarei na sua casa"; "Se perder, estarei morto").
Vejamos agora a continuação da frase atribuída a Felipão ("...mesmo que levasse Romário"). O treinador teria errado ao empregar "levasse"? Deveria ter empregado "leve" ("mesmo que leve Romário")? Não, caro leitor, a questão não é de erro ou acerto. A discussão é outra. Você percebeu que, ao empregar "levasse", Felipão mudou de plano?
Vejamos o que ocorre. Quando diz "Se perder, estou morto", o treinador se refere à certeza de que, na hipótese de derrota, estará "morto". É aí que entra o segundo plano, baseado em outra hipótese, a de levar Romário.
Para o treinador, com Romário ou sem ele, a derrota não o livrará (ou livraria) do cadafalso. É como se ele tivesse dito isto: "Se perder, estou (ou "estarei') morto, como também estaria morto se perdesse com Romário no grupo". Pobre Felipão! Mais um pouco e acabo transformando-o num defunto autor, com a devida licença de mestre Machado.
É bom que se diga que, no discurso do treinador, a mudança para o plano da segunda hipótese (a derrota com Romário) se dá com "estaria" (forma verbal implícita). Essa mudança de plano possibilitaria até o emprego de "tivesse levado" no lugar de "levasse": "Se perder, estou morto, como também estaria morto mesmo que tivesse levado Romário". Nesse caso, o treinador se transportaria para a entrevista coletiva imediatamente posterior à eliminação. Epa! Nessa situação, Felipão não diria "mesmo que tivesse levado"; diria "mesmo que tivesse trazido".
Que coisa complicada! Uma coisa é certa: muito melhor que a insossa decoreba da conjugação de verbos é entender que a escolha das formas verbais interfere diretamente no que se quer dizer, determina o plano em que se põem as afirmações etc. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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