São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SEGURANÇA

Maior unidade de emergência do Brasil, o Souza Aguiar recebe vítimas de tiros de armas de alta potência, como fuzis

Voto é polêmico em hospital para baleados

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

De bala eles entendem. Não porque usam ou apreciam armas, mas porque lidam, diariamente, com as vítimas da guerra urbana do tráfico no Rio. De tanto tentar salvar vidas que chegam por um fio à emergência do hospital municipal Souza Aguiar, os médicos de lá foram aprendendo, na prática, a lidar com ferimentos causados por armas com poder cada vez maior de destruição. Eles são unânimes em apontar os estragos que elas vem causando, mas se dividem quanto ao voto no referendo de 23 de outubro.
O hospital é considerado a maior emergência do Brasil e, por sua localização estratégica, no centro da cidade, recebe uma parte significativa de baleados em confrontos entre traficantes ou com a polícia. A intensificação dessa disputa mudou também a rotina do hospital e obrigou os profissionais que atuam na emergência a entender melhor de um assunto antes restrito aos especialistas em ferimentos de guerra.
O médico Sérgio Sardinha, 46, acompanhou bem esse processo. Com 22 anos de profissão, trabalha há 13 anos na emergência do Souza Aguiar e há 16 no hospital da Polícia Militar. Pouco antes de falar com a reportagem da Folha, na semana passada, estava operando um colega de profissão que chegou baleado ao Souza Aguiar.
Sardinha virou referência entre os colegas por guardar imagens e radiografias que ajudam a ilustrar os estragos que as armas mais modernas são capazes de fazer no corpo humano. "Antes, a gente não tinha que ter aulas de balística ou entender de calibre e trajeto de projétil, por exemplo. Hoje, isso é essencial."
Relatos de Sardinha e de colegas seus comprovam que a realidade que bate às portas da emergência do Souza Aguiar mudou muito nos últimos 15 anos.
"A gente sempre atendeu muita vítima de bala aqui. Há 20 anos, no entanto, o mais comum era chegarem pessoas feridas com balas de calibre 22 ou de pequenas armas de fogo. Em alguns casos, a opção era a de nem operar, já que o projétil podia não ter causado danos graves. Hoje, no entanto, os ferimentos causados por essas armas mais potentes exigem uma intervenção cirúrgica mais agressiva", afirma José Macedo de Araújo Neto, 47, diretor-geral do Souza Aguiar.
As estatísticas de baleados do Souza Aguiar comprovam isso. Em 1995, foram atendidos 1.556 vítimas de balas -12,9% morreram. Em 2004, o número diminui para 825, mas a taxa de óbitos aumentou para 17,1%.
Pode parecer estranho o fato de o número de atendimentos por bala ter diminuído, mas a causa disso é justamente o aumento do poder de fogo das novas armas. "Muitos baleados nem sequer são encaminhados ao hospital. Eles morrem no local onde são atingidos ou já chegam aqui sem vida", afirma o diretor-geral.
Quando conseguem chegar, esses pacientes passam por nova prova de vida. Para avaliar o que é preciso fazer em cada caso, os cirurgiões precisam dominar cada vez mais a diferença entre ferimentos feitos por armas distintas. Sardinha explica que é fundamental entender que o poder de destruição de uma arma é determinado não apenas por seu calibre mas principalmente pela velocidade com que chega ao alvo e o trajeto que faz no corpo.
"O orifício de entrada freqüentemente é mínimo, mas o de saída é muito grande. Isso acontece porque a bala disparada de uma arma mais potente faz vários trajetos dentro do corpo humano. Ao chegar com mais velocidade, ela libera muito mais energia, causando uma lesão maior do que a provocada por uma arma menos potente. Há até balas comuns em fuzis AR-15 com capacidade de fragmentação de 50% de sua massa. É como se cada pedacinho dela se transformasse em outra ao encontrar o corpo humano."

Referendo
Apesar de vivenciar diariamente os estragos que essas novas armas causam, os médicos se encontram divididos quanto ao voto no referendo.
Macedo, por exemplo, diz estar propenso a votar "não". "Esses casos de baleados graves que a gente atende aqui nada têm a ver com as armas que o governo pretende proibir. Se você for pensar bem, o carro também pode ser considerado uma arma. Hoje podem proibir o direito de portar arma. E se amanhã decidem me proibir também de dirigir?"
Antônio Pantaleão Júnior, 39, chefe da cirurgia geral, diz estar indeciso: "Inicialmente iria votar no "sim", mas comecei a ouvir os argumentos dos que são "não" e fiquei em dúvida".
Carlos Vasconcellos, 56, coordenador de clínica cirúrgica, no entanto, diz que votará "sim" com convicção. "Eu já presenciei casos de crianças que morreram por curiosidade ao brincar com a arma do pai. Isso me basta para me convencer de que o comércio de armas deve ser proibido."
Essa é a mesma opinião de Sardinha: "Se a pessoa tem uma arma, uma briga de vizinhos que normalmente seria resolvida no tapa acaba virando uma tragédia. Acho que o desarmamento vai diminuir esse tipo de violência".


Texto Anterior: Há 50 anos: Reintegrados oficiais afastados por Perón
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.