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SEGURANÇA
Maior unidade de emergência do Brasil, o Souza Aguiar recebe vítimas de tiros de armas de alta potência, como fuzis
Voto é polêmico em hospital para baleados
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
De bala eles entendem. Não
porque usam ou apreciam armas,
mas porque lidam, diariamente,
com as vítimas da guerra urbana
do tráfico no Rio. De tanto tentar
salvar vidas que chegam por um
fio à emergência do hospital municipal Souza Aguiar, os médicos
de lá foram aprendendo, na prática, a lidar com ferimentos causados por armas com poder cada
vez maior de destruição. Eles são
unânimes em apontar os estragos
que elas vem causando, mas se dividem quanto ao voto no referendo de 23 de outubro.
O hospital é considerado a
maior emergência do Brasil e, por
sua localização estratégica, no
centro da cidade, recebe uma parte significativa de baleados em
confrontos entre traficantes ou
com a polícia. A intensificação
dessa disputa mudou também a
rotina do hospital e obrigou os
profissionais que atuam na emergência a entender melhor de um
assunto antes restrito aos especialistas em ferimentos de guerra.
O médico Sérgio Sardinha, 46,
acompanhou bem esse processo.
Com 22 anos de profissão, trabalha há 13 anos na emergência do
Souza Aguiar e há 16 no hospital
da Polícia Militar. Pouco antes de
falar com a reportagem da Folha,
na semana passada, estava operando um colega de profissão que
chegou baleado ao Souza Aguiar.
Sardinha virou referência entre
os colegas por guardar imagens e
radiografias que ajudam a ilustrar
os estragos que as armas mais
modernas são capazes de fazer no
corpo humano. "Antes, a gente
não tinha que ter aulas de balística
ou entender de calibre e trajeto de
projétil, por exemplo. Hoje, isso é
essencial."
Relatos de Sardinha e de colegas
seus comprovam que a realidade
que bate às portas da emergência
do Souza Aguiar mudou muito
nos últimos 15 anos.
"A gente sempre atendeu muita
vítima de bala aqui. Há 20 anos,
no entanto, o mais comum era
chegarem pessoas feridas com balas de calibre 22 ou de pequenas
armas de fogo. Em alguns casos, a
opção era a de nem operar, já que
o projétil podia não ter causado
danos graves. Hoje, no entanto, os
ferimentos causados por essas armas mais potentes exigem uma
intervenção cirúrgica mais agressiva", afirma José Macedo de
Araújo Neto, 47, diretor-geral do
Souza Aguiar.
As estatísticas de baleados do
Souza Aguiar comprovam isso.
Em 1995, foram atendidos 1.556
vítimas de balas -12,9% morreram. Em 2004, o número diminui
para 825, mas a taxa de óbitos aumentou para 17,1%.
Pode parecer estranho o fato de
o número de atendimentos por
bala ter diminuído, mas a causa
disso é justamente o aumento do
poder de fogo das novas armas.
"Muitos baleados nem sequer são
encaminhados ao hospital. Eles
morrem no local onde são atingidos ou já chegam aqui sem vida",
afirma o diretor-geral.
Quando conseguem chegar, esses pacientes passam por nova
prova de vida. Para avaliar o que é
preciso fazer em cada caso, os cirurgiões precisam dominar cada
vez mais a diferença entre ferimentos feitos por armas distintas.
Sardinha explica que é fundamental entender que o poder de
destruição de uma arma é determinado não apenas por seu calibre mas principalmente pela velocidade com que chega ao alvo e o
trajeto que faz no corpo.
"O orifício de entrada freqüentemente é mínimo, mas o de saída
é muito grande. Isso acontece
porque a bala disparada de uma
arma mais potente faz vários trajetos dentro do corpo humano.
Ao chegar com mais velocidade,
ela libera muito mais energia,
causando uma lesão maior do que
a provocada por uma arma menos potente. Há até balas comuns
em fuzis AR-15 com capacidade
de fragmentação de 50% de sua
massa. É como se cada pedacinho
dela se transformasse em outra ao
encontrar o corpo humano."
Referendo
Apesar de vivenciar diariamente os estragos que essas novas armas causam, os médicos se encontram divididos quanto ao voto
no referendo.
Macedo, por exemplo, diz estar
propenso a votar "não". "Esses
casos de baleados graves que a
gente atende aqui nada têm a ver
com as armas que o governo pretende proibir. Se você for pensar
bem, o carro também pode ser
considerado uma arma. Hoje podem proibir o direito de portar arma. E se amanhã decidem me
proibir também de dirigir?"
Antônio Pantaleão Júnior, 39,
chefe da cirurgia geral, diz estar
indeciso: "Inicialmente iria votar
no "sim", mas comecei a ouvir os
argumentos dos que são "não" e fiquei em dúvida".
Carlos Vasconcellos, 56, coordenador de clínica cirúrgica, no
entanto, diz que votará "sim"
com convicção. "Eu já presenciei
casos de crianças que morreram
por curiosidade ao brincar com a
arma do pai. Isso me basta para
me convencer de que o comércio
de armas deve ser proibido."
Essa é a mesma opinião de Sardinha: "Se a pessoa tem uma arma, uma briga de vizinhos que
normalmente seria resolvida no
tapa acaba virando uma tragédia.
Acho que o desarmamento vai diminuir esse tipo de violência".
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