São Paulo, segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

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MOACYR SCLIAR

Lixo e vida


Ele não trabalhava, não ganhava um centavo, bebia o dia todo. Sim, ele era mesmo um lixo

Um suicida foi salvo após se jogar do oitavo andar de seu apartamento e cair no lixo acumulado nas ruas de Nova York. Devido às nevascas, a coleta de lixo estava suspensa na cidade desde o Natal. O homem de 26 anos foi levado ao hospital. O estado dele era considerado crítico, mas estável. Mundo, 4 de janeiro de 2011

A mania de comprar e guardar objetos velhos e artigos de brechó fez a vida de uma senhora americana virar um caos. Sua residência estava cheia de lixo, do qual, intimada pelos bombeiros, ela teve de se livrar, colocando-o na rua. A história foi contada em um episódio do reality show "Obsessivos Compulsivos" ("Hoarders", em inglês), exibido pelo canal A&E. Equilíbrio, 4 de janeiro de 2011

Você é um lixo, dizia-lhe a mulher, com desprezo, e ele jamais protestava: sabia que, no fundo, ela tinha razão. Ele não trabalhava, não ganhava um centavo, bebia o dia todo; às vezes, pegava a guitarra e dedilhava algumas notas, dentro de seu vago projeto de tornar-se um compositor famoso, um sucessor de John Lennon. Mas não passava disso, dessas raras e frustradas tentativas.
Ela é quem tinha de providenciar o sustento de ambos e, para isso, trabalhava em dois empregos. Sim, ele era mesmo um lixo. Um dia, depois de uma discussão particularmente violenta, resolveu por um fim naquilo. Num impulso, abriu a janela do apartamento de oitavo andar em que moravam e pulou para fora, certo de que iria morrer.
Não morreu. Perdeu os sentidos e, quando acordou sentindo muitas dores, certamente por causa de fraturas, viu-se deitado sobre uma verdadeira montanha de sacos de lixo.
E não pode deixar de sorrir diante da ironia: ele, lixo, havia sido salvo pelo lixo. Cuja origem, aliás, ele conhecia: eram coisas que a moradora do apartamento térreo acumulara durante anos e das quais fora obrigada a se livrar, depois que os moradores do prédio a haviam denunciado aos bombeiros.
De imediato foi socorrido e levado ao hospital. A mulher, torturada pela culpa, não saía de perto dele, pedindo perdão constantemente. Mas não era nela que ele pensava. Era na moradora do térreo.
Tão logo recebeu alta, foi visitá-la. Era uma senhora de meia idade, esquisita, mas simpática; e não pode deixar de sorrir quando ele disse: "Seu lixo me salvou, eu lhe serei eternamente grato".
Não é lixo, disse ela. É a minha vida que estava ali, naqueles sacos plásticos. Aquelas bugigangas, aquelas coisas antigas, aqueles objetos pitorescos, aquelas roupas velhas, aqueles antigos recortes de jornal... Eu. A minha existência.
Ele assentiu em silêncio. Sabia o que ela estava querendo dizer. E sabia que, daí em diante, viria visitá-la seguidamente. No lixo, tinha encontrado uma alma irmã.

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br


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