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MOACYR SCLIAR
O rádio apaixonado
Passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia
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Rádio de carro aumentou volume sozinho até pifar, afirma leitora. "Comecei a observar que o rádio esquentava o botão se a frente fosse deixada nele. Logo depois, começou a ficar louco: aumentava o volume sozinho, até parar de funcionar". Ela disse ainda ter notado um som estranho que saía do interior do aparelho. "Só posso escutar o rádio com o carro ligado
e, a cada vez que o ligo, ele está todo desconfigurado. O meu MP4 queimou ao ser
ligado ao rádio". Cotidiano, 3 de março de 2008.
MINHA QUERIDA DONA, sei
que você anda se queixando de mim, publicamente,
até. Você não pode imaginar o sofrimento que isto me causa, mesmo
porque você provavelmente acha
que rádios são objetos inanimados,
sem vida própria.
Você está enganada. Ao menos no
meu caso, você está enganada. Ao
contrário do que você pensa, tenho
sentimentos, tenho emoções. É em
nome desses sentimentos e dessas
emoções que lhe falo agora, tanto
em AM como em FM. Na verdade,
eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até
que fui instalado em seu carro.
Você estava muito feliz; tinham
lhe dito que minha marca é ótima, e
que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse
que é esse trânsito. E, eu colocado no
meu lugar, você me acariciou, você
tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade.
Você fez de mim um ser vivo.
Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por
sua presença. Era para você que eu
queria transmitir as melodias que
recebia por meio de tantas canções.
Você ao volante, minha felicidade
era completa.
Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava
conta disso. Você me ligava, você
sintonizava uma emissora qualquer
e pronto, voltava à sua vidinha. Pior:
tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me
dava ciúmes, ciúmes terríveis. O
Bentinho, do Machado de Assis,
aquele que desconfiava da Capitu,
não sofreu tanto. Lá pelas tantas eu
tinha ciúmes até do seu MP4.
Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus
ciúmes, têm como descarregar a
frustração. Mas eu sou um rádio, um
bom rádio, mas rádio, de qualquer
maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo
que estava a meu alcance: o som.
Quando você estava com alguém de
quem eu não gostava, eu aumentava
meu volume -e volume, você sabe, é
coisa que não me falta- até chegar a
níveis insuportáveis, uma avalanche
de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar:
era ele ou eu.
Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está
certa: estou desconfigurado, estou
desfigurado, estou perturbado
-mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.
Querida dona, estas são minhas
derradeiras palavras, antes de sair
definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os
sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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