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MARILENE FELINTO
Quando a lei é burra, a gente burla
Normalmente não gosta de velocidade, de alta velocidade, na direção de veículos,
mas de noite, dirigindo em São
Paulo, desenvolveu um método
contra a guerra -chamada pelo
eufemístico "falta de segurança"-, contra a possibilidade de
ser assassinada, rendida a qualquer instante pelo cano de uma
arma na janela do carro.
Se está sozinha no automóvel,
tarde da noite, as ruas meio desertas, encara o volante como
quem dirige um tanque de guerra
e pode, a qualquer instante, ser
alvo de um disparo de escopeta,
de uma granada.
São quase 30 km da zona oeste,
onde trabalha, à zona sul, onde
mora. Vai a 100 km por hora e só
reduz onde sabe que há radares.
Não respeita sinais -dá uma ligeira verificada e passa.
Dirigir de noite virou oportunidade de desrespeitar a lei sem culpa: "quando a lei é burra, a gente
burla", alguém tinha dito dias
antes, sobre não ser possível respeitar sinais de trânsito de noite.
Só pára mesmo nos cruzamentos entre avenidas, o inevitável.
Ainda assim, fica de olho nos carros à sua volta: o novo modus
operandi dos bandidos é atacar
em grupos de três ou quatro; saem
de um carro também parado no
sinal, rendem a vítima, entram
em seu automóvel e seguem ali
dentro, enquanto os outros o acobertam no carro de trás.
Para esquecer essa possibilidade, liga o rádio em alto volume,
que ajuda a espantar o medo.
Quanto mais medo, pior. O medo
é uma reação emocional (desejo
de fugir ou de se esconder) a um
perigo presente ou antecipado.
Sinal aberto, hora de acelerar
de novo, ultrapassar os retardatários, desviar dos pedintes que
atravancam as esquinas: "sai da
frente ou eu te atropelo, filha da...
Que inferno de tanta gente pobre
até de madrugada, que miséria!",
explode, em pensamento. Que
droga de país! Tem de tudo pedindo esmola na madrugada: criança, velho, homem, mulher. Cadê o
tal Plano Nacional de Segurança
Pública?
Onde é que o tal "Plano" vai enfiar esses miseráveis? Como é que
podem inventar um "Plano de Segurança" se não há plano para
mudar a vida dos miseráveis? O
medo vai se transformando em
ódio, em descaso pelo que possa
acontecer dali por diante -é
bom, isso dá coragem, torna a
aventura excitante.
Se um ladrão batesse com o revólver em seu vidro naquele instante, ela abriria e daria uma resposta espontânea, desconcertante
talvez: "Não me mata, que eu
queria ver se ainda faço um sexo
rápido esta noite, que eu ando
muito estressada". Ou então: "Vê
se não me mata, que hoje eu estou
muito cansada para morrer".
Ou então: "Vê se não me irrita,
hein, que hoje eu já paguei R$ 700
só de imposto de renda para a extorsiva Receita Federal, vou pagar mais R$ 1.500 no final do mês
e mais R$ 400 de IPTU. Parte desse dinheiro deveria ser seu e desses mendigos aí do sinal. Não vai
ser, porque eles roubam de mim e
de vocês. Vai roubar lá das autoridades. Consta que só num tal de
Fundo de Segurança o governo
tem R$ 1,3 bilhão para gastar até
o final de 2001 contra bandidos
como você".
E terminaria sacando contra o
ladrão uma página de jornal.
"Escuta isso: o Plano Nacional de
Segurança Pública transferiu R$
251,6 milhões a Estados nos seis
primeiros meses de funcionamento. São Paulo foi o que mais recebeu verba -R$ 30 milhões. Você
viu a cor desse dinheiro? Pois é,
nem eu."
A não ser pelos números, pelo
medo e pelo ódio, essa história é
de ficção. Qualquer semelhança
com a realidade não passa de mera coincidência.
E-mail: mfelinto@uol.com.br
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