São Paulo, terça-feira, 10 de abril de 2001

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MARILENE FELINTO

Quando a lei é burra, a gente burla

Normalmente não gosta de velocidade, de alta velocidade, na direção de veículos, mas de noite, dirigindo em São Paulo, desenvolveu um método contra a guerra -chamada pelo eufemístico "falta de segurança"-, contra a possibilidade de ser assassinada, rendida a qualquer instante pelo cano de uma arma na janela do carro.
Se está sozinha no automóvel, tarde da noite, as ruas meio desertas, encara o volante como quem dirige um tanque de guerra e pode, a qualquer instante, ser alvo de um disparo de escopeta, de uma granada.
São quase 30 km da zona oeste, onde trabalha, à zona sul, onde mora. Vai a 100 km por hora e só reduz onde sabe que há radares. Não respeita sinais -dá uma ligeira verificada e passa.
Dirigir de noite virou oportunidade de desrespeitar a lei sem culpa: "quando a lei é burra, a gente burla", alguém tinha dito dias antes, sobre não ser possível respeitar sinais de trânsito de noite.
Só pára mesmo nos cruzamentos entre avenidas, o inevitável. Ainda assim, fica de olho nos carros à sua volta: o novo modus operandi dos bandidos é atacar em grupos de três ou quatro; saem de um carro também parado no sinal, rendem a vítima, entram em seu automóvel e seguem ali dentro, enquanto os outros o acobertam no carro de trás.
Para esquecer essa possibilidade, liga o rádio em alto volume, que ajuda a espantar o medo. Quanto mais medo, pior. O medo é uma reação emocional (desejo de fugir ou de se esconder) a um perigo presente ou antecipado.
Sinal aberto, hora de acelerar de novo, ultrapassar os retardatários, desviar dos pedintes que atravancam as esquinas: "sai da frente ou eu te atropelo, filha da... Que inferno de tanta gente pobre até de madrugada, que miséria!", explode, em pensamento. Que droga de país! Tem de tudo pedindo esmola na madrugada: criança, velho, homem, mulher. Cadê o tal Plano Nacional de Segurança Pública?
Onde é que o tal "Plano" vai enfiar esses miseráveis? Como é que podem inventar um "Plano de Segurança" se não há plano para mudar a vida dos miseráveis? O medo vai se transformando em ódio, em descaso pelo que possa acontecer dali por diante -é bom, isso dá coragem, torna a aventura excitante.
Se um ladrão batesse com o revólver em seu vidro naquele instante, ela abriria e daria uma resposta espontânea, desconcertante talvez: "Não me mata, que eu queria ver se ainda faço um sexo rápido esta noite, que eu ando muito estressada". Ou então: "Vê se não me mata, que hoje eu estou muito cansada para morrer".
Ou então: "Vê se não me irrita, hein, que hoje eu já paguei R$ 700 só de imposto de renda para a extorsiva Receita Federal, vou pagar mais R$ 1.500 no final do mês e mais R$ 400 de IPTU. Parte desse dinheiro deveria ser seu e desses mendigos aí do sinal. Não vai ser, porque eles roubam de mim e de vocês. Vai roubar lá das autoridades. Consta que só num tal de Fundo de Segurança o governo tem R$ 1,3 bilhão para gastar até o final de 2001 contra bandidos como você".
E terminaria sacando contra o ladrão uma página de jornal. "Escuta isso: o Plano Nacional de Segurança Pública transferiu R$ 251,6 milhões a Estados nos seis primeiros meses de funcionamento. São Paulo foi o que mais recebeu verba -R$ 30 milhões. Você viu a cor desse dinheiro? Pois é, nem eu."
A não ser pelos números, pelo medo e pelo ódio, essa história é de ficção. Qualquer semelhança com a realidade não passa de mera coincidência.

E-mail: mfelinto@uol.com.br



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