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GILBERTO DIMENSTEIN
Não dê esmola. Dê futuro
Uma criança consegue ganhar, em média, R$ 500 por
mês nos semáforos da cidade de
São Paulo, segundo pesquisas
realizadas por assistentes sociais
da prefeitura. É possível tirá-la da
rua?
Como já estamos habituados a
ver meninos e meninas pedintes
como extensão da paisagem urbana e conhecemos o tamanho da
miséria brasileira, a reação automática é responder não.
Com o slogan "Não dê esmola.
Dê futuro", foi lançada pela prefeitura, na quinta-feira passada,
em São Paulo, uma articulação
entre a sociedade e prefeitos da
região metropolitana para tentar
mudar essa crônica paisagem de
crianças pedintes.
Pela amplitude desse projeto,
não se trata de uma experiência
qualquer.
Vamos aprender sobre os limites de uma comunidade para
combater os sinais mais explícitos
da pobreza mais aguda. E, de quebra, sobre a habilidade de José
Serra em administrar ações sociais. Aliás, uma pesquisa do Datafolha sobre os três meses de
mandato, divulgada hoje, mostra
que ele ainda está longe de convencer sobre sua eficiência gerencial, tão propalada durante a campanha. Aparece com 37% de ruim
e péssimo; está pior do que Erundina, Marta, Maluf e Celso Pitta.
De acordo com a pesquisa, se a
eleição fosse hoje, Marta não teria
perdido.
Não se trata de uma experiência
qualquer. Está se envolvendo nessa operação um forte esquema de
poder. Governos estadual e municipal, associações comunitárias,
mídia, empresários, fundações e
ONGs terão de responder se conseguem lidar, em uma cidade de
10 milhões de habitantes, com
3.000 crianças espalhadas em
aproximadamente 200 cruzamentos.
Três mil crianças podem parecer um detalhe insignificante -e,
numericamente, não passam disso- num cenário de degradação
urbana. Há, porém, nessa mendicância um monumental valor
simbólico, capaz de sintetizar
uma incompetência coletiva.
O dinheiro arrecadado por
aquele trabalhador infantil é dividido entre os intermediários
-os grupos que se apossaram do
território e cobram "pedágio" das
crianças- e os familiares ou
adultos que agenciam a mendicância. A pancada é o recurso
empregado para manter essa exploração.
Esses trabalhadores sabem que,
se voltarem para casa de mãos
vazias, irão enfrentar adultos irados, dispostos a puni-los. Suas casas são marcadas pela falta de estrutura familiar, pelo alcoolismo
e pela promiscuidade sexual, numa química da violência cotidiana.
Desenhou-se um plano que, pelo
menos no papel, é bom, como,
aliás, a maioria deles quando estão no papel.
Além de saírem das ruas, as
crianças seriam mantidas na escola e em atividades educativas
complementares na comunidade;
ficariam, assim, boa parte do dia
aprendendo alguma coisa útil,
num esquema de pós-escola.
As famílias receberiam uma
renda mensal como uma espécie
de compensação pela perda do dinheiro que deixaria de ser adquirido na forma de esmola. Não
aceitar o acordo faria a mãe ou o
pai perderem a guarda do filho.
Os adultos agenciadores seriam
indiciados pela polícia e processados pela Justiça.
Assistentes sociais percorreriam
diariamente as ruas para encaminhar as crianças e seus familiares aos programas. Por meio de
placas, os motoristas seriam informados sobre números de telefone para chamar assistentes sociais. Além disso, também receberiam orientação sobre os meios de
fazer doações a entidades capazes
de cuidar dos mendigos mirins.
Firmou-se um acordo entre os
39 municípios que fazem parte da
região metropolitana de São Paulo por um motivo óbvio: vêm diariamente dessas cidades muitas
crianças para a capital. Cada prefeito, portanto, trataria de fazer a
sua parte para evitar a marginalidade infantil. No mais, porque,
de fato, somos uma mancha urbana de 18 milhões; as fronteiras
são quase formais.
Em essência, a aposta é a seguinte: os motoristas dariam menos esmola por confiar na ação
do poder público em parceria com
a sociedade. Menos dinheiro, menos crianças nos semáforos. Além
disso, uma vez criado um sistema
de ronda pelos assistentes sociais,
pais e agenciadores de pedintes
teriam menor sensação de impunidade.
Talvez essa aposta fique só no
papel. E aí estará visível, tanto
quanto as crianças nos semáforos, a fragilidade de toda uma comunidade, a começar de seus governantes, em enfrentar inclusive
as formas mais absurdas de exploração.
Teríamos de aceitar como inevitável, em pleno terceiro milênio,
na cidade mais global e tecnologicamente mais avançada do país,
a convivência, bem em nossa
frente, de seres tratados como escravos.
É terrível, mas não deixa de ser
um aprendizado.
PS - A pesquisa do Datafolha é
valiosa para medir a temperatura. Mas não se julga um governo
em apenas três meses; os processos demoram a mostrar resultados. A favor dele diga-se que não
partiu para a pirotecnia, não torrou dinheiro com publicidade e
assumiu imensas dívidas de curto
prazo. Serra, porém, ainda não
soube informar qual é o seu projeto para São Paulo. Ele falou tanto
em planejamento, mas não sabemos ao certo aonde ele quer chegar. É natural que a opinião pública, incensada pela expectativa
de campanha, fique ainda mais
absorvida pelo imediato.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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