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MOACYR SCLIAR
A mensagem chega ao destino
Era, na verdade, uma carta escrita para o futuro, uma espécie de declaração de intenções, um plano de vida
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"Sou um garoto de 14 anos e vivo na Bélgica. Não sei se você é uma criança, uma
mulher ou um homem. Navego em um
barco de 18 metros." Assim o belga Olivier Vanderwalle começou, em 1977, a
escrever uma mensagem para colocá-la
em uma garrafa, enquanto navegava pela
costa sul da Inglaterra. Vanderwalle passava as férias a bordo do barco de sua família quando teve a ideia de escrever o
texto. Arrancou uma página de um livro
de exercícios e achou uma garrafa de vinho que serviria para seu intento.Mais
de três décadas depois, a britânica Lorraine Yates encontrou a garrafa na praia
de Swanage, em Dorset, localizou o autor
através do Facebook e com ele entrou em
contato. Mundo, 2 de maio de 2010
PACOTES pelo correio era coisa
que ele raramente recebia, sobretudo um pacote vindo de
outro país e enviado por uma pessoa
para ele desconhecida, uma mulher
com nome inglês.
Abriu-o, intrigado, e, de imediato,
a emoção invadiu-lhe o coração: estava reconhecendo a velha e amarelada folha de papel que ali estava.
Era a sua letra: uma carta que tinha
escrito décadas antes, quando n
avegava com o pai num barco ao longo
da costa europeia.
Uma missiva sem destinatário específico, como essas que os náufragos muitas vezes enviam. Como os
náufragos, tinha colocado a carta
numa garrafa que jogara ao mar.
Diferente dos náufragos, contudo,
não o fizera movido pelo desespero;
afinal, não estava numa ilha deserta,
lutando pela sobrevivência; estava
passeando com o pai e se divertindo
bastante. Por que, então, escrevera
aquele texto?
Relendo-o, deu-se conta: era, na
verdade, uma carta escrita para o futuro, uma espécie de declaração de
intenções, um plano de vida.
Aos 14 anos, ele anunciava para
seu desconhecido correspondente
("Não sei se você é uma criança, uma
mulher ou um homem") seus projetos para o futuro.
E eram projetos muito ambiciosos, isso tinha de reconhecer. Naquela época fazia música, tocava guitarra elétrica e dirigia uma banda à frente da qual, disso estava certo, em
breve conquistaria o mundo: o grupo seria o sucessor dos Beatles.
Ficaria muito rico, teria um iate
gigantesco (muito maior que o do
pai) e percorreria os mares dando
festas e jogando ao mar garrafas de
caro champanhe -mas sem nenhuma mensagem dentro, claro.
Infelizmente isso não tinha ocorrido. O grupo se desfizera; ele, desiludido, acabara por desistir da carreira musical. O pai, mal sucedido
nos negócios, não lhe deixara herança. Forçado a ganhar a vida, acabara
por se tornar garçom, e era disso que
vivia. A velhice se aproximava e ele
já não tinha qualquer esperança de
conquistar fama e fortuna.
Em suma, a carta era o testemunho de seu fracasso. Que culminava
com o último parágrafo, no qual falava da mulher de seus sonhos: loira,
bonita, olhos claros, covinhas.
Mas a moça com quem casara, e
da qual estava separado, era muito
diferente: morena, olhos escuros,
sem covinhas.
Com a carta, vinha uma foto da remetente. E aí de repente sentiu renascer o sonho de sua juventude.
Porque era o retrato de uma moça
loira, bonita, de olhos claros. Ah,
sim, e tinha covinhas.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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