São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2010

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MOACYR SCLIAR

A mensagem chega ao destino


Era, na verdade, uma carta escrita para o futuro, uma espécie de declaração de intenções, um plano de vida


"Sou um garoto de 14 anos e vivo na Bélgica. Não sei se você é uma criança, uma mulher ou um homem. Navego em um barco de 18 metros." Assim o belga Olivier Vanderwalle começou, em 1977, a escrever uma mensagem para colocá-la em uma garrafa, enquanto navegava pela costa sul da Inglaterra. Vanderwalle passava as férias a bordo do barco de sua família quando teve a ideia de escrever o texto. Arrancou uma página de um livro de exercícios e achou uma garrafa de vinho que serviria para seu intento.Mais de três décadas depois, a britânica Lorraine Yates encontrou a garrafa na praia de Swanage, em Dorset, localizou o autor através do Facebook e com ele entrou em contato. Mundo, 2 de maio de 2010

PACOTES pelo correio era coisa que ele raramente recebia, sobretudo um pacote vindo de outro país e enviado por uma pessoa para ele desconhecida, uma mulher com nome inglês.
Abriu-o, intrigado, e, de imediato, a emoção invadiu-lhe o coração: estava reconhecendo a velha e amarelada folha de papel que ali estava. Era a sua letra: uma carta que tinha escrito décadas antes, quando n
avegava com o pai num barco ao longo da costa europeia.
Uma missiva sem destinatário específico, como essas que os náufragos muitas vezes enviam. Como os náufragos, tinha colocado a carta numa garrafa que jogara ao mar.
Diferente dos náufragos, contudo, não o fizera movido pelo desespero; afinal, não estava numa ilha deserta, lutando pela sobrevivência; estava passeando com o pai e se divertindo bastante. Por que, então, escrevera aquele texto?
Relendo-o, deu-se conta: era, na verdade, uma carta escrita para o futuro, uma espécie de declaração de intenções, um plano de vida.
Aos 14 anos, ele anunciava para seu desconhecido correspondente ("Não sei se você é uma criança, uma mulher ou um homem") seus projetos para o futuro. E eram projetos muito ambiciosos, isso tinha de reconhecer. Naquela época fazia música, tocava guitarra elétrica e dirigia uma banda à frente da qual, disso estava certo, em breve conquistaria o mundo: o grupo seria o sucessor dos Beatles.
Ficaria muito rico, teria um iate gigantesco (muito maior que o do pai) e percorreria os mares dando festas e jogando ao mar garrafas de caro champanhe -mas sem nenhuma mensagem dentro, claro.
Infelizmente isso não tinha ocorrido. O grupo se desfizera; ele, desiludido, acabara por desistir da carreira musical. O pai, mal sucedido nos negócios, não lhe deixara herança. Forçado a ganhar a vida, acabara por se tornar garçom, e era disso que vivia. A velhice se aproximava e ele já não tinha qualquer esperança de conquistar fama e fortuna.
Em suma, a carta era o testemunho de seu fracasso. Que culminava com o último parágrafo, no qual falava da mulher de seus sonhos: loira, bonita, olhos claros, covinhas. Mas a moça com quem casara, e da qual estava separado, era muito diferente: morena, olhos escuros, sem covinhas.
Com a carta, vinha uma foto da remetente. E aí de repente sentiu renascer o sonho de sua juventude. Porque era o retrato de uma moça loira, bonita, de olhos claros. Ah, sim, e tinha covinhas.

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br


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