São Paulo, segunda-feira, 10 de junho de 2002

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MOACYR SCLIAR

Os desastres do futebol

 
Um grupo de 20 presos aproveitou o jogo de estréia da seleção na Copa para fugir do Centro de Detenção Provisória de Osasco, na Grande São Paulo.
Cotidiano, 4.jun.2002

O futebol ainda será a sua perdição, costumava dizer-lhe a mãe, e, no fundo, bem no fundo, ele sabia que ela estava absolutamente certa. Mas o que podia fazer? Amava o esporte. Amava, não: tinha uma louca paixão pelo esporte. O futebol era a sua vida; isso desde muito pequeno. Estava sempre vendo jogos na TV, fugia da escola para ir bater bola com os amigos. Poderia ter sido o começo de uma notável carreira, mas não foi; a verdade é que, aos 18 anos, ele não passava de um jogador medíocre, como todos lhe diziam. O que em nada diminuía o seu entusiasmo. Com a Copa, então, entrou em delírio. Sabia tudo não apenas sobre o time do Brasil como sobre os times de outros países. Não havia torcedor mais entusiasmado.
Mas um detalhe o deixava triste: não tinha camiseta da seleção. E como torcer sem camiseta? Da mãe, uma viúva pobre, não podia esperar nenhuma ajuda: ela jamais lhe daria dinheiro para tal finalidade. Tão desesperado estava, que acabou fazendo uma bobagem: roubou uma camiseta de um vendedor ambulante. Foi preso e levado para o Centro de Detenção Provisória. Ali encontrou um amigo, um rapaz das redondezas, veterano assaltante. Não se preocupe, disse esse amigo, não vamos ficar muito tempo aqui.
Falou-lhe do plano de fuga, muito simples:
- Amanhã de manhã é o jogo da seleção. Os homens aqui vão todos ver a partida na TV. E nessa hora a gente escapa. Por um túnel.
Era o que ele queria, escapar. Mas havia um obstáculo para isso.
Esse obstáculo era um pequeno televisor, que um dos presos tinha trazido exatamente para ver o jogo do Brasil. Quando ele deu por si, estava de olho grudado na tela, sofrendo com as jogadas sensacionais: Ronaldo passando por dois marcadores, cruzando na área, Rivaldo, sozinho, cabeceando com precisão e o goleiro defendendo! Que bela defesa e que azar! Vamos embora, repetia o amigo, mas ele não podia sair dali, só mais um pouco, pedia. Por fim, aos 39 do segundo tempo, os fugitivos se mandaram. Ele ia segui-los, mas nesse exato instante o juiz deu o pênalti. Como podia ele fugir na hora do pênalti? Ficou, delirou com a precisa cobrança de Rivaldo. E então, aliviado, sentiu que podia fugir. Saiu pelo corredor afora apenas para dar de cara com os guardas, que, suspeitando de alguma coisa, agora estavam a postos.
Foi levado para a cela. Feliz: o Brasil tinha ganho. O resto pouco importava.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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