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RUBEM ALVES
Os artistas
O que dá alegria às crianças é a simplicidade dos desejos. Eu desejava pouco; portanto o pouco que tinha era muito
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MEU PAI foi homem rico em
tempos antes do meu nascimento. Lembro-me só
dos tempos de pobreza dos quais
não tenho nem uma só memória
triste. Isso deve soar estranho aos
pais que pretendem dar felicidade
aos seus filhos e tranqüilidade a si
mesmos locupletando-os com brinquedos que logo ficam velhos e são
abandonados. O que dá alegria às
crianças não é a multiplicidade dos
brinquedos mas a simplicidade dos
desejos. Eu desejava pouco; portanto o pouco que eu tinha era muito.
Albert Camus escreveu nos Primeiros Cadernos: "Que pode um homem desejar de melhor do que a pobreza? Não disse miséria nem o trabalho sem esperança do proletário
moderno. Mas não vejo o que pode
desejar-se mais do que a pobreza ligada a um ócio ativo".
No meu ócio ativo entenda-se ócio
ativo como o tempo livre para fazer
o que eu quisesse, sem a perturbação da presença dos adultos -eu fazia meus próprios brinquedos. Está
tudo contado no livro que escrevi
para minhas netas "Quando eu era
menino" (Papirus).
Mas antes de ir à falência e ficar
pobre meu pai era dono de muita
coisa na cidade. Fábricas, imóveis,
serraria. Novidadeiro, apresentou à
população pacata de Boa Esperança
um assombro do progresso: água
açucarada colorida endurecida e fria
em torno de um pauzinho que era
para ser chupada. Era o picolé que
durante muitos dias foi o grande assunto das rodas de conversas dos ricos e dos pobres. Como é que a água mole ficava dura? Era também dono
do cinema que passava filmes mudos explicados aos berros por um
italiano. Profissão que não existe
mais: explicador de filmes...
Pois um dia chegou a Boa Esperança pela jardineira que vinha de
Três Pontas um casalzinho diferente, dois moços, que tinha ares de cidade grande. Ficaram perdidos ao
descer da jardineira porque lá não
havia nem pensão e nem hotel. Para
agravar o embaraço havia o fato de
serem artistas de teatro que chegavam àquele lugarzinho perdido para
se apresentarem num espetáculo.
Sem saber o que fazer, foram procurar o Diano, meu pai, apelido do
nome mais estranho que já vi, Herodiano... Meu pai logo se apressou e
levou os dois para se hospedarem na
sua casa. Alugaram o cinema do meu
pai por uma noite e prometeram pagar com o lucro do espetáculo.
Meu pai, olhando para aquele casalzinho, pensou: "Mas ninguém vai
gastar dinheiro para ver esses dois.
Eles vão dar um espetáculo para
ninguém..."
Meu pai não suportava ver ninguém sofrer. Pois sabem o que ele
fez? Comprou a lotação inteira do
seu próprio cinema e distribuiu os
bilhetes pelo povo, gratuitamente.
O cinema ficou lotado. Ninguém
recusa presente dado. O espetáculo
foi um sucesso. Os artistas ficaram
exultantes. Foram pagar o aluguel.
Meu pai não aceitou. Saíram de Boa
Esperança com a cara cheia de risos
e o bolso cheio... de dinheiro do meu
pai...
O nome do artista homem nunca
me foi dito. Mas o nome da artista
mulher era Dercy Gonçalves. É possível que ela nem mais se lembre
desse ocorrido.
Esse episódio me veio à memória
porque, se não me engano, no dia 23
de junho a eterna Dercy completou
100 anos. Ô, mulher maravilhosa. O
tempo não pode com a alma dela!
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