São Paulo, sábado, 10 de setembro de 2005

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LETRAS JURÍDICAS

Cartas novas para falhas velhas

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

De que vai adiantar o exame mais rigoroso para motoristas, se quase um terço de todos os que dirigem veículos em São Paulo estão com suas cartas vencidas ou sem elas?
O custo mais elevado das novas provas de trânsito deve estimular o desrespeito à lei, aumentando o número dos motoristas ilegais. Ainda mais quando o Detran, passados três anos, não regularizou nem mesmo o serviço de emplacamento de veículos, feito sem a licitação exigida por lei?
A distância paradoxal entre a legislação vigente e a realidade dos que dirigem sem carta ou com período de validade vencido é estranha. O Estado, quando tantos veículos trafegam em condições irregulares, é o grande culpado.
Talvez o leitor se surpreenda com a afirmação da responsabilidade da administração pública, mas ela está na lei. O Código Brasileiro de Trânsito determina, no artigo 2º, que o tráfego, em condições seguras, é direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito.
Veja bem: trata-se de trafegar por ruas e estradas com segurança, como direito de todos. Os cidadãos têm o dever de atuar segundo as normas legais. Se as desrespeitarem impunemente, a responsabilidade principal deixa de ser deles, mas passa ao Estado. Afinal de contas verificar quais as pessoas que não têm condições legais de dirigir não há de ser tarefa impossível, como tem sido. O mesmo artigo 2º atribui, aos órgãos e entidades oficiais, "no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito".
Decorre do artigo, portanto, que quando o poder público não cumpre sua obrigação, deve pagar por isso, como está no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição. Vejo, evidente, a descrença do leitor quanto ao "deve pagar". Tudo bem, tudo bem, a lei diz o que diz, mas adianta reclamar? Não. Não adianta, porque infelizmente o Estado tem meios infindáveis para retardar qualquer decisão judicial e os aplica sem a menor cerimônia. Por seu lado, o Judiciário tem uma atitude paternalista quanto aos atos de seus colegas do Executivo. Cobrar alguma dívida da União, dos Estados e dos municípios é tarefa extremamente complicada.
Então, não tem jeito? Aos poucos, o jeito vai aparecer. Um sinal auspicioso está no mesmo Código de Trânsito, pois o parágrafo 3º do artigo 2º diz que os órgãos e entidades controladores do trânsito respondem objetivamente, no âmbito das respectivas competências, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro.
Da minha experiência, tenho constatado serem pouquíssimos os que sabem dessas duas regras essenciais do trânsito, relativas à responsabilidade do Estado, mas o fato de já existirem é um bom passo à frente. As transformações da realidade social (crescimento rápido da população urbana e introdução maciça do transporte individual), sobretudo nas grandes cidades, terminaram por complicar a vida de nossas cidades.
Nos próximos anos é provável que a solução demore. Ou até é muito possível que as condições gerais piorarão. Exames mais caros, mais complicados (com a conseqüente corrupção aumentada) ainda subsistirão, enquanto a cidadania não aprender a cuidar de seus direitos, e o Judiciário se capacitar para a resposta breve e qualificada às queixas que lhe sejam submetidas. A inércia social sacrifica o interesse comum.


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