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CENA PAULISTANA
Sem-teto que morava em um barraco de 80 centímetros de altura ganha casa de madeira de empreiteira
Engenheiro dá nova "toca" para Cascavel
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Ninguém pôs no papel, mas é
lei -uma das inúmeras regras informais que São Paulo produz:
moradores de rua e empreiteiras
não se misturam. Quando uma
construtora desloca operários, caminhões e betoneiras para áreas
públicas e inicia a reforma de
pontes, a canalização de córregos
ou a abertura de avenidas, os sem-teto que habitam as imediações
acabam expulsos.
A lógica separatista, entretanto,
está se rompendo num movimentado viaduto da zona noroeste.
Um negro de braços fortes e pernas esquálidas, que se locomove
sobre cadeira de rodas, e um engenheiro civil de sotaque interiorano protagonizam a distensão.
O negro afirma se chamar Cascavel, embora exiba documentos
que o identificam como Nilton da
Silva. Desde janeiro de 1991, vive
sob o viaduto Antártica.
Explica que se mudou para "o
relento" porque cumpre "uma
promessa". "Pedi, o Altíssimo me
concedeu e agora tenho de retribuir. Só saio daqui depois de 20
anos." Não adianta lhe perguntar
o que pediu. Ele se nega a revelar.
Por muito tempo, morou perto
de um dos 25 pilares que sustentam os 690 metros de pista. Fez
uma casinha de madeira com
aproximadamente 80 centímetros de altura, em que costumava
dormir. Na "toca" -assim define
o abrigo-, cabia apenas deitado.
Para entrar, precisava sair da cadeira e se arrastar.
O engenheiro, Heitor Ducci, 45,
funcionário da construtora Jofege, coordena há 11 meses a restauração do viaduto. Uma obra pesada, que mobiliza cerca de 60 homens e deve se prolongar até dezembro de 2001. A prefeitura banca os custos: R$ 7,3 milhões.
Em setembro passado, Ducci
-com duas décadas de profissão- esbarrou num dilema que
classifica de "humano" e que
nunca enfrentara antes. Chegara a
hora de os peões trabalharem justamente onde se encontrava a "toca". "Cascavel me falou sobre a tal
promessa e insistiu: queria continuar ali", relembra o engenheiro.
"Aquilo comoveu todos nós. Pensei: o coitado já aguentou nove
anos de sol e chuva... Não tive coragem de removê-lo."
Decidiu, então, lhe erguer outra
casa, poucos passos à frente da
antiga, mas ainda debaixo do viaduto. "Escolhemos um cantinho
estratégico, que não nos atrapalhasse nem colocasse o novo barraco em perigo."
O próprio Cascavel comandou a
construção. "Seguimos à risca as
orientações dele." Rapidamente,
levantaram uma casa de oito metros quadrados, também de madeira, que dispõe de beliche, energia elétrica e altura suficiente para
acolher um adulto em pé.
Se necessita de água, Cascavel
utiliza o reservatório de 15 mil litros que a empreiteira instalou na
área. Banheiro, usa o mesmo dos
operários.
Os acontecimentos dos últimos
meses o deixaram "assombrado".
"Sujeito nenhum imaginaria coisa dessa grandeza. Ganhar, de repente, uma casa maior..."
Ofende-se quando alguém diz
que ele mora na rua. "Não moro.
Quem mora na rua é carro. Vivo
em cima da calçada, embaixo da
ponte, num lugarzinho bem sossegado." Sossego dos mais peculiares: dentro do barraco, é impossível abafar os rumores do
trânsito e das britadeiras que o rodeiam (de segunda a sábado, o
barulho da obra começa às 7h e só
acalma perto das 18h).
Sob o mesmo viaduto, alguns
quarteirões adiante, abrigam-se
pelo menos 45 famílias de sem-teto. Em breve, o aparato da Jofege
irá desembarcar por lá. E, desta
vez, não haverá acordo. "Infelizmente, teremos de acionar a prefeitura para retirar o pessoal", avisa o engenheiro. "De um, podemos cuidar. Mas de dezenas..."
Ágil na cadeira de rodas, Cascavel passa boa parte do dia varrendo os arredores da casa. A imagem, um tanto patética, remete à
sina de Sísifo. Condenado pelos
deuses a levar uma enorme rocha
até o alto de um monte, o personagem da mitologia grega nunca
conseguia cumprir a pena: mal alcançava o cume, a pedra rolava
morro abaixo, puxada pelo próprio peso.
"Limpo, limpo, e o pó não vai
embora", lamenta. "Ainda assim,
continuarei limpando. O país está
cheio de ministros da sujeira. Eu,
não. Sou ministro da limpeza."
Aproveita o mote e critica "os
poderosos". Ataca Covas, Pitta,
FHC, Lalau. Mostra-se bem-informado. Conta que lê jornais e
acompanha os noticiários da televisão -no barraco, organizadíssimo, mantém uma TV portátil,
um toca-fitas, 52 cassetes, um fogãozinho, um tapete e um pequeno acervo de revistas. "Não peço
nada para ninguém, só que o povo das redondezas adora me dar
presentes: cesta básica, roupas,
panetone. Com os agrados, vou
enchendo minha toca."
Volta e meia, recorta fotos das
revistas e as cola nas paredes de
casa. Prefere mulheres nuas. "Não
conheço enfeite melhor."
Sobre si mesmo, fornece informações confusas. Garante, por
exemplo, que completou 70 anos.
No entanto, parece ter 40.
Divide o beliche com Ligeirinho, menino que tirou da rua e
que chama de neto. Na porta do
barraco, afixou uma placa: "Não
há vagas". "O motivo? Estou me
prevenindo do MST."
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