São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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CENA PAULISTANA
Sem-teto que morava em um barraco de 80 centímetros de altura ganha casa de madeira de empreiteira
Engenheiro dá nova "toca" para Cascavel

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Ninguém pôs no papel, mas é lei -uma das inúmeras regras informais que São Paulo produz: moradores de rua e empreiteiras não se misturam. Quando uma construtora desloca operários, caminhões e betoneiras para áreas públicas e inicia a reforma de pontes, a canalização de córregos ou a abertura de avenidas, os sem-teto que habitam as imediações acabam expulsos.
A lógica separatista, entretanto, está se rompendo num movimentado viaduto da zona noroeste. Um negro de braços fortes e pernas esquálidas, que se locomove sobre cadeira de rodas, e um engenheiro civil de sotaque interiorano protagonizam a distensão.
O negro afirma se chamar Cascavel, embora exiba documentos que o identificam como Nilton da Silva. Desde janeiro de 1991, vive sob o viaduto Antártica.
Explica que se mudou para "o relento" porque cumpre "uma promessa". "Pedi, o Altíssimo me concedeu e agora tenho de retribuir. Só saio daqui depois de 20 anos." Não adianta lhe perguntar o que pediu. Ele se nega a revelar.
Por muito tempo, morou perto de um dos 25 pilares que sustentam os 690 metros de pista. Fez uma casinha de madeira com aproximadamente 80 centímetros de altura, em que costumava dormir. Na "toca" -assim define o abrigo-, cabia apenas deitado. Para entrar, precisava sair da cadeira e se arrastar.
O engenheiro, Heitor Ducci, 45, funcionário da construtora Jofege, coordena há 11 meses a restauração do viaduto. Uma obra pesada, que mobiliza cerca de 60 homens e deve se prolongar até dezembro de 2001. A prefeitura banca os custos: R$ 7,3 milhões.
Em setembro passado, Ducci -com duas décadas de profissão- esbarrou num dilema que classifica de "humano" e que nunca enfrentara antes. Chegara a hora de os peões trabalharem justamente onde se encontrava a "toca". "Cascavel me falou sobre a tal promessa e insistiu: queria continuar ali", relembra o engenheiro. "Aquilo comoveu todos nós. Pensei: o coitado já aguentou nove anos de sol e chuva... Não tive coragem de removê-lo."
Decidiu, então, lhe erguer outra casa, poucos passos à frente da antiga, mas ainda debaixo do viaduto. "Escolhemos um cantinho estratégico, que não nos atrapalhasse nem colocasse o novo barraco em perigo."
O próprio Cascavel comandou a construção. "Seguimos à risca as orientações dele." Rapidamente, levantaram uma casa de oito metros quadrados, também de madeira, que dispõe de beliche, energia elétrica e altura suficiente para acolher um adulto em pé.
Se necessita de água, Cascavel utiliza o reservatório de 15 mil litros que a empreiteira instalou na área. Banheiro, usa o mesmo dos operários.
Os acontecimentos dos últimos meses o deixaram "assombrado". "Sujeito nenhum imaginaria coisa dessa grandeza. Ganhar, de repente, uma casa maior..."
Ofende-se quando alguém diz que ele mora na rua. "Não moro. Quem mora na rua é carro. Vivo em cima da calçada, embaixo da ponte, num lugarzinho bem sossegado." Sossego dos mais peculiares: dentro do barraco, é impossível abafar os rumores do trânsito e das britadeiras que o rodeiam (de segunda a sábado, o barulho da obra começa às 7h e só acalma perto das 18h).
Sob o mesmo viaduto, alguns quarteirões adiante, abrigam-se pelo menos 45 famílias de sem-teto. Em breve, o aparato da Jofege irá desembarcar por lá. E, desta vez, não haverá acordo. "Infelizmente, teremos de acionar a prefeitura para retirar o pessoal", avisa o engenheiro. "De um, podemos cuidar. Mas de dezenas..."
Ágil na cadeira de rodas, Cascavel passa boa parte do dia varrendo os arredores da casa. A imagem, um tanto patética, remete à sina de Sísifo. Condenado pelos deuses a levar uma enorme rocha até o alto de um monte, o personagem da mitologia grega nunca conseguia cumprir a pena: mal alcançava o cume, a pedra rolava morro abaixo, puxada pelo próprio peso.
"Limpo, limpo, e o pó não vai embora", lamenta. "Ainda assim, continuarei limpando. O país está cheio de ministros da sujeira. Eu, não. Sou ministro da limpeza."
Aproveita o mote e critica "os poderosos". Ataca Covas, Pitta, FHC, Lalau. Mostra-se bem-informado. Conta que lê jornais e acompanha os noticiários da televisão -no barraco, organizadíssimo, mantém uma TV portátil, um toca-fitas, 52 cassetes, um fogãozinho, um tapete e um pequeno acervo de revistas. "Não peço nada para ninguém, só que o povo das redondezas adora me dar presentes: cesta básica, roupas, panetone. Com os agrados, vou enchendo minha toca."
Volta e meia, recorta fotos das revistas e as cola nas paredes de casa. Prefere mulheres nuas. "Não conheço enfeite melhor."
Sobre si mesmo, fornece informações confusas. Garante, por exemplo, que completou 70 anos. No entanto, parece ter 40.
Divide o beliche com Ligeirinho, menino que tirou da rua e que chama de neto. Na porta do barraco, afixou uma placa: "Não há vagas". "O motivo? Estou me prevenindo do MST."


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