São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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NO PAÍS DA IMPUNIDADE

A história de Alexandre

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A JUIZ DE FORA

A madrugada se aproximava do fim, era noite ainda, mas o garçom desempregado Alexandre de Oliveira não conseguira pregar os olhos um só minuto. Agora, de joelhos, vasculhava uma cela sem cama ou colchão em busca de algum instrumento cortante. Decidira se matar.
Numa pequena caixa elétrica de interruptor, descobriu dois clipes de metal. Abriu-os, liberando as extremidades. Olhou os pulsos, e faltou coragem para o suicídio, conta. Em alguns dias voltou a dormir, em madrugadas entrecortadas por um sonho recorrente: seu assassinato a bala.
O pesadelo de Alexandre de Oliveira, 23, desenhou-se numa sexta-feira, 12 de janeiro passado. Enquanto fazia bico lixando paredes, sua mulher, a empregada doméstica também sem emprego Rosângela Lourenço Alves, 25, correu para o Hospital Municipal de Bom Jardim de Minas (MG), o único da cidade a 290 km ao sul de Belo Horizonte. Nos braços, ela carregava a filha do casal, Larissa, de 1 ano e 7 meses de idade.
A menina sangrava pela região genital. Um médico apontou indícios físicos de estupro. Assinou um atestado sustentando o diagnóstico. A mãe contou que o pai trocava as fraldas da filha.
Chamados às pressas pelo hospital, um sargento e um soldado da Polícia Militar prenderam Oliveira quando ele levava um pacote de fraldas descartáveis que substituiriam as de pano adotadas no período de vacas magras. A suspeita: abuso sexual.
Durante quatro horas, o garçom negou o crime. Confessou-o, relata, após ser torturado com tapas na cabeça, varadas nas solas dos pés e choques elétricos na nuca. Um exame feito seis dias depois constatou ferimentos compatíveis com a versão.
""Eu perguntei se, caso confessasse, eles parariam de me bater. Aí confessei", diz Alexandre. Ele assinou com letra trêmula um depoimento narrando excitação e relação sexual com o bebê.
Em seguida à noite insone na cela da delegacia policial de Bom Jardim, quando imaginou pôr fim à vida, foi transferido para a cadeia de Andrelândia, a 36 km.
Lá, recorda ele, os guardas espalharam -""Esse cara estuprou a filha, perfurou a bexiga!"- aos detentos que Alexandre violentara Larissa. ""Os presos disseram que iriam me matar."
Antes, ameaçaram ""pôr saia" no novo hóspede, cumprindo a lei de talião cara aos cárceres: aos estupradores, o estupro.

Tumor
No mesmo sábado em que Oliveira foi levado para Andrelândia, sua filha trocou o hospital de Bom Jardim pela Santa Casa de Juiz de Fora (MG), cidade-pólo da região, a 100 km. Foi reconhecida como a menina que, aos 8 meses, retirara um diminuto tumor nas costas, abaixo da coluna.
Não ocorrera aos pais, nenhum com mais de seis anos de estudo, que houvera uma metástase, a disseminação do câncer extirpado. E existia na pelve um tumor, medindo oito centímetros de comprimento, que invadia as raízes nervosas da coluna, provocava o sangramento e impedia o bebê de andar -havia semanas que ele nem engatinhava.
Uma médica esquadrinhou a menina e não encontrou sinais de violência. O laudo do Instituto Médico Legal confirmou: o hímen permanecia intacto. Larissa Alves Oliveira jamais fora estuprada.
Enquanto isso, seu pai permanecia preso. Graças a um magistrado de Juiz de Fora, ele foi solto na quarta-feira, cinco dias após ter sido detido. Num exame de corpo de delito pedido por um delegado acusado por Alexandre de tortura, em Bom Jardim, o médico não enxergou ferimentos. No dia seguinte, em Juiz de Fora, o resultado foi outro.
Dois meses depois, a família vive de caridade em Juiz de Fora. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos, órgão da arquidiocese do município, arrumou abrigo provisório para Oliveira num seminário. Rosângela hospeda-se com Larissa numa fundação dedicada a amparar crianças pobres que sofrem de câncer.
Após dois ciclos de quimioterapia, às vésperas do terceiro, Larissa ensaia a recuperação dos movimentos das pernas, mas ainda não anda. Sorri pouco. O tumor reduziu-se pelo menos à metade -quatro centímetros. Consequência das drogas, restaram à menina poucos tufos de cabelo.
O trauma das internações rendeu-lhe um horror: quando vislumbra alguém vestido de branco, como seu fisioterapeuta, ela chora um choro desesperado.

Impunidade
Até hoje, ninguém foi punido pela prisão do homem errado: nem médicos, nem policiais. Longe da cidade de Bom Jardim, Oliveira, a mulher e a filha Larissa tentam recomeçar.
Nascido em Volta Redonda, no sul do Estado do Rio de Janeiro, Alexandre mudou-se com a mãe para Bom Jardim aos 8 anos, depois da morte do pai, metalúrgico. Pelo Censo de 2000, havia 6.641 habitantes na cidade.
Alexandre estudou apenas até a sexta série. Começou a trabalhar aos 13 anos, para ajudar em casa. Foi balconista de armazém, barman em danceteria, garçom em pizzaria, servente de pedreiro, ferroviário, biscateiro.
""Amigou-se" -na sua definição- com Rosângela faz quatro anos, na esteira das mortes das mães de ambos. Em 1998, ela enjoou e comunicou-lhe a gravidez. Alexandre escolheu o nome: ""Gostei de Larissa porque ouvi falar que vem de alegria".
Em pouco tempo, avistaram uma formação ondular nas costas, cinco centímetros abaixo da coluna da filha. ""Era um lombinho", lembra o pai. ""A gente deixou a menina crescer e tomou as providências", diz ele.
O tumor foi retirado em Juiz de Fora quando Larissa tinha 8 meses. Sem dinheiro, os pais não a levaram para os exames de rotina agendados. Silencioso, o tumor de células germinativas recidivado -aquele que é tratado e retorna- evoluiu.
Em 4 de janeiro, sangrando, a menina foi levada para o hospital de Bom Jardim. Tomou soro e foi liberada. Oito dias depois, o corrimento era abundante.
""O tumor envolvia a cavidade pélvica", diz a médica de Larissa, Tereza Cristina Esteves, com formação em oncologia pediátrica.
Quem atendeu Larissa em Bom Jardim, contudo, foi um médico sem formação em oncologia. O plantonista era o especialista em medicina do trabalho Edson de Rezende Filho.
Foi ele quem viu marcas de estupro. Quem pediu para a polícia ser acionada. Rezende Filho assinou o atestado manuscrito de oito linhas que diagnosticou e detalhou os ""sinais de estupro".
Ao ir em casa almoçar, Alexandre soube, por uma vizinha, que a mulher correra com a filha para o hospital. Ele terminou o trabalho e foi para lá. Sua mulher pediu que comprasse fraldas. Ao voltar, foi barrado pelos policiais militares. Sua história, narrada à Folha:
""Me levaram de carro para o posto da Polícia Militar, na rodoviária. No caminho, já falaram que eu havia estuprado minha filha. No posto, me algemaram na cadeira. O sargento foi embora. O soldado Lagrota falou: "Trata de confessar ou vai ser pior". Que ia ser pior com a chegada do delegado e do detetive. Me xingou de vagabundo, pilantra. Deu tapas na cabeça. Eu só jurava inocência."
""Chegou o detetive, que com Lagrota me levou para a delegacia. O detetive me pediu para sentar no chão, na entrada. Pediu para tirar o sapato e pegou uma espécie de vareta, da largura de uma caneta. Não sei do que era, parecia enrolada em fita isolante. Começou a bater na sola dos dois pés. Ardia, e eu gritava."
Em seguida, conta o garçom, o soldado Lagrota e o detetive, identificado como Jorge Vaz, o levaram para rodar de carro. ""Disseram que eu podia gritar que ninguém ia escutar. Perguntei ao detetive se ele ia parar de me agredir se eu confessasse. Deu na cabeça falar isso. Ele falou que ia parar. Eu comecei uma história. Voltamos à delegacia."

Tapas
Logo, conforme Alexandre, chegou o delegado Anderson Carrilho Lobato. Por telefone, o policial já sabia do caso.
""O delegado chegou xingando", diz o garçom. ""Começou a dar tapa na minha cabeça. Passou um instante e foi a um cômodo e pegou um aparelho de choque, dentro de um saquinho de papel. Não ligou em tomada. Não sei se era a bateria. Aplicava atrás, no pescoço. Dava uma sensação de desmaio, mas não desmaiei."
""O delegado pediu para eu confessar. Comecei a história de novo. Ele afirmava, e eu concordava. Já que não tinha mesmo idéia de onde tirar a história, começava a concordar", conta ele.
Alexandre assinou o documento que falava em ""relação anal e vaginal" com a própria filha. Na cela, não dormiu a noite toda. Com o sol a pino, lembrou do antigo tumor de Larissa e avisou os policiais. ""O detetive saiu, voltou e disse que o médico confirmou que era estupro."
Na cadeia de Andrelândia, o sono era breve. ""Tinha medo de que me matassem." Mais que a dor física, de acordo com seu relato, doía a acusação de estupro. ""Pensava que todo mundo pensava isso, até minha mulher, já que o médico tinha confirmado."
No dia 17, quarta-feira, o jornal ""Tribuna de Minas", de Juiz de Fora, noticiou pela primeira vez o caso, que viria a ganhar destaque nos diários de Belo Horizonte. Representantes da Ordem dos Advogados do Brasil obtiveram na Justiça o ordem de soltura.
O primeiro exame de corpo de delito, feito em Bom Jardim por ordem do delegado Lobato, foi assinado pelo médico Clélio Carvalho Lopes. Ele negou vestígios de ""ofensa à integridade física".
No dia seguinte, sem a presença de policiais na sala, em Juiz de Fora, os médicos-legistas José Fernando Sales e Moacir Oliveira Ferraz atestaram as marcas na nuca e nos pés. Em cicatrização, não podiam ser muito recentes.

Reencontro
Alexandre relata que, no instante em que reencontrou a mulher e a filha, pensou: ""É muito bom a gente ter um filho e poder brincar. O que mais importa é a gente viver a vida, e não deixar de viver".
Os médicos Tereza Cristina Esteves e Herbert Tânius Francisco tiveram sua avaliação sobre a integridade anatômica da menina Larissa confirmada pelo Instituto Médico Legal.
Alexandre viria a ouvir Rosângela afirmar em depoimento que ela nunca duvidou do marido. Ele nunca abordou-a diretamente. ""A gente não toca muito no assunto", diz. ""É muito chato de falar, evito os pensamentos sobre o que passei. Não tivemos mais esse tipo de conversa", afirma.
Evangélico, jura que perdoou médicos e policiais. ""Mas quero Justiça." Enquanto não consegue alugar uma casa para unir a família, Alexandre visita a mulher e a filha na fundação que acolhe Larissa. É lá que brinca com a menina, cujo futuro é impossível de prever. ""Desde que ela nasceu, eu penso em criar, educar, ver crescendo, estudando, tendo uma vida melhor que a que eu tive. A vida não foi boa para mim", diz ele.


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