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NO PAÍS DA IMPUNIDADE
A história de Alexandre
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A JUIZ DE FORA
A madrugada se aproximava do
fim, era noite ainda, mas o garçom desempregado Alexandre de
Oliveira não conseguira pregar os
olhos um só minuto. Agora, de
joelhos, vasculhava uma cela sem
cama ou colchão em busca de algum instrumento cortante. Decidira se matar.
Numa pequena caixa elétrica de
interruptor, descobriu dois clipes
de metal. Abriu-os, liberando as
extremidades. Olhou os pulsos, e
faltou coragem para o suicídio,
conta. Em alguns dias voltou a
dormir, em madrugadas entrecortadas por um sonho recorrente: seu assassinato a bala.
O pesadelo de Alexandre de Oliveira, 23, desenhou-se numa sexta-feira, 12 de janeiro passado. Enquanto fazia bico lixando paredes, sua mulher, a empregada doméstica também
sem emprego Rosângela Lourenço
Alves, 25, correu
para o Hospital
Municipal de
Bom Jardim de
Minas (MG), o
único da cidade a
290 km ao sul de
Belo Horizonte.
Nos braços, ela
carregava a filha
do casal, Larissa,
de 1 ano e 7 meses
de idade.
A menina sangrava pela região
genital. Um médico apontou indícios físicos de estupro. Assinou um atestado sustentando o diagnóstico. A mãe
contou que o pai trocava as fraldas da filha.
Chamados às pressas pelo hospital, um sargento e um soldado
da Polícia Militar prenderam Oliveira quando ele levava um pacote de fraldas descartáveis que
substituiriam as de pano adotadas no período de vacas magras.
A suspeita: abuso sexual.
Durante quatro horas, o garçom
negou o crime. Confessou-o, relata, após ser torturado com tapas
na cabeça, varadas nas solas dos
pés e choques elétricos na nuca.
Um exame feito seis dias depois
constatou ferimentos compatíveis com a versão.
""Eu perguntei se, caso confessasse, eles parariam de me bater.
Aí confessei", diz Alexandre. Ele
assinou com letra trêmula um depoimento narrando excitação e
relação sexual com o bebê.
Em seguida à noite insone na
cela da delegacia policial de Bom
Jardim, quando imaginou pôr fim
à vida, foi transferido para a cadeia de Andrelândia, a 36 km.
Lá, recorda ele, os guardas espalharam -""Esse cara estuprou a
filha, perfurou a bexiga!"- aos
detentos que Alexandre violentara Larissa. ""Os presos disseram
que iriam me matar."
Antes, ameaçaram ""pôr saia"
no novo hóspede, cumprindo a lei
de talião cara aos cárceres: aos estupradores, o estupro.
Tumor
No mesmo sábado em que Oliveira foi levado para Andrelândia,
sua filha trocou o hospital de Bom
Jardim pela Santa Casa de Juiz de
Fora (MG), cidade-pólo da região,
a 100 km. Foi reconhecida como a
menina que, aos 8 meses, retirara
um diminuto tumor nas costas,
abaixo da coluna.
Não ocorrera aos pais, nenhum
com mais de seis anos de estudo,
que houvera uma metástase, a
disseminação do câncer extirpado. E existia na pelve um tumor,
medindo oito centímetros de
comprimento, que invadia as raízes nervosas da coluna, provocava o sangramento e impedia o bebê de andar -havia semanas que
ele nem engatinhava.
Uma médica esquadrinhou a
menina e não encontrou sinais de
violência. O laudo do Instituto
Médico Legal confirmou: o hímen
permanecia intacto. Larissa Alves
Oliveira jamais fora estuprada.
Enquanto isso, seu pai permanecia preso. Graças a um magistrado de Juiz de Fora, ele foi solto
na quarta-feira, cinco dias após
ter sido detido. Num exame de
corpo de delito pedido por um delegado acusado
por Alexandre de
tortura, em Bom
Jardim, o médico
não enxergou ferimentos. No dia
seguinte, em Juiz
de Fora, o resultado foi outro.
Dois meses depois, a família vive
de caridade em
Juiz de Fora. O
Centro de Defesa
dos Direitos Humanos, órgão da
arquidiocese do
município, arrumou abrigo provisório para Oliveira num seminário. Rosângela hospeda-se com
Larissa numa fundação dedicada
a amparar crianças pobres que
sofrem de câncer.
Após dois ciclos de quimioterapia, às vésperas do terceiro, Larissa ensaia a recuperação dos movimentos das pernas, mas ainda
não anda. Sorri pouco. O tumor
reduziu-se pelo menos à metade
-quatro centímetros. Consequência das drogas, restaram à
menina poucos tufos de cabelo.
O trauma das internações rendeu-lhe um horror: quando vislumbra alguém vestido de branco,
como seu fisioterapeuta, ela chora
um choro desesperado.
Impunidade
Até hoje, ninguém foi punido
pela prisão do homem errado:
nem médicos, nem policiais. Longe da cidade de Bom Jardim, Oliveira, a mulher e a filha Larissa
tentam recomeçar.
Nascido em Volta Redonda, no
sul do Estado do Rio de Janeiro,
Alexandre mudou-se com a mãe
para Bom Jardim aos 8 anos, depois da morte do pai, metalúrgico. Pelo Censo de 2000, havia
6.641 habitantes na cidade.
Alexandre estudou apenas até a
sexta série. Começou a trabalhar
aos 13 anos, para ajudar em casa.
Foi balconista de armazém, barman em danceteria, garçom em
pizzaria, servente de pedreiro, ferroviário, biscateiro.
""Amigou-se" -na sua definição- com Rosângela faz quatro
anos, na esteira das mortes das
mães de ambos. Em 1998, ela enjoou e comunicou-lhe a gravidez.
Alexandre escolheu o nome:
""Gostei de Larissa porque ouvi falar que vem de alegria".
Em pouco tempo, avistaram
uma formação ondular nas costas, cinco centímetros abaixo da
coluna da filha. ""Era um lombinho", lembra o pai. ""A gente deixou a menina crescer e tomou as
providências", diz ele.
O tumor foi retirado em Juiz de
Fora quando Larissa tinha 8 meses. Sem dinheiro, os pais não a levaram para os exames de rotina
agendados. Silencioso, o tumor
de células germinativas recidivado -aquele que é tratado e retorna- evoluiu.
Em 4 de janeiro, sangrando, a
menina foi levada para o hospital
de Bom Jardim. Tomou soro e foi
liberada. Oito dias depois, o corrimento era abundante.
""O tumor envolvia a cavidade
pélvica", diz a médica de Larissa,
Tereza Cristina Esteves, com formação em oncologia pediátrica.
Quem atendeu Larissa em Bom
Jardim, contudo, foi um médico
sem formação em oncologia. O
plantonista era o especialista em
medicina do trabalho Edson de
Rezende Filho.
Foi ele quem viu marcas de estupro. Quem pediu para a polícia
ser acionada. Rezende Filho assinou o atestado manuscrito de oito
linhas que diagnosticou e detalhou os ""sinais de estupro".
Ao ir em casa almoçar, Alexandre soube, por uma vizinha, que a
mulher correra com a filha para o
hospital. Ele terminou o trabalho
e foi para lá. Sua mulher pediu
que comprasse fraldas. Ao voltar,
foi barrado pelos policiais militares. Sua história, narrada à Folha:
""Me levaram de carro para o
posto da Polícia Militar, na rodoviária. No caminho, já falaram
que eu havia estuprado minha filha. No posto, me algemaram na
cadeira. O sargento foi embora. O
soldado Lagrota falou: "Trata de
confessar ou vai ser pior". Que ia
ser pior com a chegada do delegado e do detetive. Me xingou de vagabundo, pilantra. Deu tapas na
cabeça. Eu só jurava inocência."
""Chegou o detetive, que com
Lagrota me levou
para a delegacia.
O detetive me pediu para sentar no
chão, na entrada.
Pediu para tirar o
sapato e pegou
uma espécie de
vareta, da largura
de uma caneta.
Não sei do que
era, parecia enrolada em fita isolante. Começou a
bater na sola dos
dois pés. Ardia, e
eu gritava."
Em seguida,
conta o garçom, o
soldado Lagrota e
o detetive, identificado como Jorge Vaz, o levaram
para rodar de carro. ""Disseram
que eu podia gritar que ninguém
ia escutar. Perguntei ao detetive se
ele ia parar de me agredir se eu
confessasse. Deu na cabeça falar
isso. Ele falou que ia parar. Eu comecei uma história. Voltamos à
delegacia."
Tapas
Logo, conforme Alexandre, chegou o delegado Anderson Carrilho Lobato. Por telefone, o policial
já sabia do caso.
""O delegado chegou xingando",
diz o garçom. ""Começou a dar tapa na minha cabeça. Passou um
instante e foi a um cômodo e pegou um aparelho de choque, dentro de um saquinho de papel. Não
ligou em tomada. Não sei se era a
bateria. Aplicava atrás, no pescoço. Dava uma sensação de desmaio, mas não desmaiei."
""O delegado pediu para eu confessar. Comecei a história de novo. Ele afirmava, e eu concordava.
Já que não tinha mesmo idéia de
onde tirar a história, começava a
concordar", conta ele.
Alexandre assinou o documento que falava em ""relação anal e
vaginal" com a própria filha. Na
cela, não dormiu a noite toda.
Com o sol a pino, lembrou do antigo tumor de Larissa e avisou os
policiais. ""O detetive saiu, voltou
e disse que o médico confirmou
que era estupro."
Na cadeia de Andrelândia, o sono era breve. ""Tinha medo de que
me matassem." Mais que a dor física, de acordo com seu relato,
doía a acusação de estupro. ""Pensava que todo mundo pensava isso, até minha mulher, já que o
médico tinha confirmado."
No dia 17, quarta-feira, o jornal
""Tribuna de Minas", de Juiz de
Fora, noticiou pela primeira vez o
caso, que viria a ganhar destaque
nos diários de Belo Horizonte. Representantes da Ordem dos Advogados do Brasil obtiveram na
Justiça o ordem de soltura.
O primeiro exame de corpo de
delito, feito em Bom Jardim por
ordem do delegado Lobato, foi assinado pelo médico Clélio Carvalho Lopes. Ele negou vestígios de
""ofensa à integridade física".
No dia seguinte, sem a presença
de policiais na sala, em Juiz de Fora, os médicos-legistas José Fernando Sales e Moacir Oliveira
Ferraz atestaram as marcas na nuca e nos pés. Em cicatrização, não
podiam ser muito recentes.
Reencontro
Alexandre relata que, no instante em que reencontrou a mulher e
a filha, pensou: ""É muito bom a
gente ter um filho e poder brincar.
O que mais importa é a gente viver a vida, e não
deixar de viver".
Os médicos Tereza Cristina Esteves e Herbert Tânius Francisco tiveram sua avaliação sobre a integridade anatômica da menina Larissa confirmada
pelo Instituto Médico Legal.
Alexandre viria
a ouvir Rosângela
afirmar em depoimento que ela
nunca duvidou do
marido. Ele nunca
abordou-a diretamente. ""A gente
não toca muito no assunto", diz.
""É muito chato de falar, evito os
pensamentos sobre o que passei.
Não tivemos mais esse tipo de
conversa", afirma.
Evangélico, jura que perdoou
médicos e policiais. ""Mas quero
Justiça." Enquanto não consegue
alugar uma casa para unir a família, Alexandre visita a mulher e a
filha na fundação que acolhe Larissa. É lá que brinca com a menina, cujo futuro é impossível de
prever. ""Desde que ela nasceu, eu
penso em criar, educar, ver crescendo, estudando, tendo uma vida melhor que a que eu tive. A vida não foi boa para mim", diz ele.
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