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PASQUALE CIPRO NETO
"À alma faminta, o amargo torna-se doce"
Em fevereiro, dediquei
duas ou três colunas ao acento indicador de crase (acento grave). Pois bem, logo no primeiro
dia de março, mestre Carlos Heitor Cony presenteou seus leitores
com "Alma Farta", verdadeira
maravilha, cujas primeiras palavras são estas: "A alma farta despreza o mel. À alma faminta, o
amargo torna-se doce".
Ao voltar das férias, encontrei
algumas mensagens de leitores
que pediam comentários a respeito do acento grave em "À alma faminta". Quem não leu o texto de
Cony certamente quer saber de
onde vem a frase citada. Recorramos ao texto de Cony: "Cito de
memória um trecho da Bíblia, Livro dos Provérbios, se não me engano capítulo 27, versículo 7".
Posto isso, vamos aos fatos. Em
sua primeira ocorrência, o substantivo "alma" é precedido de artigo ("a"); nesse caso, "a alma farta" é sujeito de "despreza". Na
verdade, temos aí um processo
metonímico, em que "a alma farta" está por "quem tem a alma
farta" ou coisa do gênero.
Em sua segunda ocorrência, o
substantivo "alma" não faz parte
do sujeito (o sujeito de "torna-se"
é "o amargo"). Os termos da segunda oração não estão dispostos
no que se chama de ordem direta
(que seria algo como "O amargo
torna-se doce à alma faminta").
O acento grave no "à" de "à alma faminta" decorre da fusão da
preposição "a" (que, no caso, poderia ser substituída por "para")
com o artigo "a" ("À alma faminta" = "Para a alma faminta").
Note, caro leitor, que o provérbio perderia o viço se fosse escrito
ou dito na ordem direta ("A alma
farta despreza o mel. O amargo
torna-se doce à alma faminta").
O cerne do provérbio está em opor
a alma farta à alma faminta, o
que implica o emprego dessas expressões na mesma posição (e não
com a mesma função).
Agora, vamos comparar o que
ocorre no provérbio citado por
Cony com o que se vê neste trecho
da canção "Sampa", de Caetano
Veloso: "E à mente apavora o que
ainda não é mesmo velho". Pois
bem, o trecho de "Sampa" também está na ordem indireta, mas,
se o colocássemos na ordem direta, o acento grave desapareceria:
"O que ainda não é mesmo velho
apavora a mente".
Por que o acento sumiu? Porque
o verbo "apavorar" não rege preposição: "Possibilidade de calote
argentino apavora os investidores" (e não "aos investidores").
Então por que é obrigatório o emprego do acento grave no trecho
de Caetano? Justamente porque o
trecho está na ordem indireta.
Sem o acento no "a", a expressão
"a mente" ocuparia o papel de sujeito da oração. Sem o acento, a
mente não seria alvo do apavoramento, mas seu agente; o alvo do
apavoramento passaria a ser "o
que não é mesmo velho".
É claro que a leitura atenta do
texto de Caetano facilita o entendimento da frase e do motivo do
emprego do acento grave. No poema-canção, Caetano fala da
aversão ao novo, do narcisismo
("É que Narciso acha feio o que
não é espelho"), da dificuldade
que temos para aceitar o novo, o
diferente. Nesse contexto, faz todo
o sentido do mundo entender que
é o que ainda não é mesmo velho
(ou seja, o novo) o que apavora a
mente (e não o contrário).
Mais uma vez, reafirmo que é
sempre conveniente e necessário
associar o conhecimento da estrutura da língua ao contexto. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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