São Paulo, quinta-feira, 11 de março de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"À alma faminta, o amargo torna-se doce"

Em fevereiro, dediquei duas ou três colunas ao acento indicador de crase (acento grave). Pois bem, logo no primeiro dia de março, mestre Carlos Heitor Cony presenteou seus leitores com "Alma Farta", verdadeira maravilha, cujas primeiras palavras são estas: "A alma farta despreza o mel. À alma faminta, o amargo torna-se doce".
Ao voltar das férias, encontrei algumas mensagens de leitores que pediam comentários a respeito do acento grave em "À alma faminta". Quem não leu o texto de Cony certamente quer saber de onde vem a frase citada. Recorramos ao texto de Cony: "Cito de memória um trecho da Bíblia, Livro dos Provérbios, se não me engano capítulo 27, versículo 7".
Posto isso, vamos aos fatos. Em sua primeira ocorrência, o substantivo "alma" é precedido de artigo ("a"); nesse caso, "a alma farta" é sujeito de "despreza". Na verdade, temos aí um processo metonímico, em que "a alma farta" está por "quem tem a alma farta" ou coisa do gênero.
Em sua segunda ocorrência, o substantivo "alma" não faz parte do sujeito (o sujeito de "torna-se" é "o amargo"). Os termos da segunda oração não estão dispostos no que se chama de ordem direta (que seria algo como "O amargo torna-se doce à alma faminta").
O acento grave no "à" de "à alma faminta" decorre da fusão da preposição "a" (que, no caso, poderia ser substituída por "para") com o artigo "a" ("À alma faminta" = "Para a alma faminta").
Note, caro leitor, que o provérbio perderia o viço se fosse escrito ou dito na ordem direta ("A alma farta despreza o mel. O amargo torna-se doce à alma faminta"). O cerne do provérbio está em opor a alma farta à alma faminta, o que implica o emprego dessas expressões na mesma posição (e não com a mesma função).
Agora, vamos comparar o que ocorre no provérbio citado por Cony com o que se vê neste trecho da canção "Sampa", de Caetano Veloso: "E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho". Pois bem, o trecho de "Sampa" também está na ordem indireta, mas, se o colocássemos na ordem direta, o acento grave desapareceria: "O que ainda não é mesmo velho apavora a mente".
Por que o acento sumiu? Porque o verbo "apavorar" não rege preposição: "Possibilidade de calote argentino apavora os investidores" (e não "aos investidores"). Então por que é obrigatório o emprego do acento grave no trecho de Caetano? Justamente porque o trecho está na ordem indireta. Sem o acento no "a", a expressão "a mente" ocuparia o papel de sujeito da oração. Sem o acento, a mente não seria alvo do apavoramento, mas seu agente; o alvo do apavoramento passaria a ser "o que não é mesmo velho".
É claro que a leitura atenta do texto de Caetano facilita o entendimento da frase e do motivo do emprego do acento grave. No poema-canção, Caetano fala da aversão ao novo, do narcisismo ("É que Narciso acha feio o que não é espelho"), da dificuldade que temos para aceitar o novo, o diferente. Nesse contexto, faz todo o sentido do mundo entender que é o que ainda não é mesmo velho (ou seja, o novo) o que apavora a mente (e não o contrário).
Mais uma vez, reafirmo que é sempre conveniente e necessário associar o conhecimento da estrutura da língua ao contexto. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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