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Barco ignora risco e viaja no escuro para fugir de fiscal
Folha fez viagem semelhante a que acabou em naufrágio no domingo passado
Barco com salva-vidas
rasgados e sem lista de
passageiros só saiu do porto
irregular quando lanchas da
Marinha foram embora
KÁTIA BRASIL
DA AGÊNCIA FOLHA, EM MANACAPURU
Cruzar os rios da Amazônia
em barcos que ligam as cidades
ribeirinhas é viver sob risco de
naufrágio. Imprudentes, donos
das embarcações driblam a fiscalização da Marinha com conivência de passageiros. Quem
ousa reclamar perde o direito
de seguir viagem.
No domingo passado, um
barco superlotado e em situação irregular naufragou no rio
Solimões, em Manacapuru (84
km a oeste de Manaus). Até ontem à tarde, 46 corpos de vítimas haviam sido resgatados.
Dez pessoas ainda estariam desaparecidas.
Para verificar as condições
dessas viagens, a reportagem
tomou um barco em Manaus na
última quinta-feira. O destino:
Manacapuru, a cidade do acidente de domingo. Sete horas
rio Solimões acima separavam
os municípios.
O trajeto começa no maior
porto irregular do Amazonas,
as escadarias da avenida Manaus Moderna. Às margens do
rio Negro, camelôs, carregadores, comerciantes de passagens
e pescadores dividem espaço
em um ambiente poluído.
A repórter e o repórter-fotográfico compram, por R$ 15 cada um, bilhetes para o percurso
na embarcação Capitão Antônio. Com dois andares em madeira, o barco é semelhante ao
acidentado no Solimões, o Comandante Sales.
Com início marcado para
17h, a viagem só começou às
18h15, quando duas lanchas da
Marinha finalizaram o expediente. "As baratinhas [lanchas
da Marinha] estão ali, vamos
esperar um pouco", disse um
passageiro a Argemiro Auzier,
63, o comandante do Capitão
Antônio.
Sem lista de passageiros
Dentro do barco, com capacidade para 60 pessoas, outra irregularidade é notada logo no
início da viagem: não havia lista
dos 22 passageiros, que se acomodavam em redes atadas aos
conveses.
O mesmo ocorreu com a embarcação Comandante Sales,
daí a dificuldade de precisar o
número de desaparecidos até
agora.
Com cinco tripulantes e um
cachorro, o Capitão Antônio
tem apenas um banheiro, fétido. Carregava oito toneladas de
mercadorias (abaixo da capacidade máxima, de 20 toneladas)
entre alimentos e materiais de
construção. Os salva-vidas, fabricados em 2003, estavam
vencidos, sem apitos e rasgados.
Mesmo antes de desatracar,
Auzier e o dono do barco, Antônio Macena, questionaram a
Folha sobre o objetivo da reportagem. Preocupados, diziam não querer "problemas
com a Marinha".
O comandante, único a conceder entrevista, disse que o
barco estava em situação legal.
Afirmou conhecer bem "99%
dos rios do Amazonas". Para
ele, acidentes como o de domingo passado só ocorrem por
"imprudência do comandante,
bebida e problemas no motor".
Durante o percurso, os procedimentos não foram o de
uma viagem regular.
No escuro
Logo que escureceu, Macena
mandou apagar as luzes do barco. O repórter-fotográfico
acendeu uma lâmpada no convés superior, rapidamente desligada por outro passageiro.
No breu do rio Solimões, o
barco fica quase invisível aos
olhos dos fiscais. Até Manacapuru, o Capitão Antônio percorreu vilas, ultrapassou dezenas de embarcações, enfrentou
ondas provocadas por outros
barcos, bancos de areia e remoinhos sem acender as luzes
dos conveses.
A única parada foi em Iranduba (25 km de Manaus), às
21h, para compra de gás, cervejas e refrigerantes em um porto
flutuante.
A maior parte dos passageiros eram parentes da autônoma Waldilene da Silva, 29, que
seguiam para uma festa em
Caapiranga. Com exceção de
duas adolescentes no grupo de
12 pessoas, todos bebiam sem
parar ao som do brega, gênero
popular no Norte do país. "Conhecemos o dono do barco e
nos sentimos seguros", disse
Waldilene.
Por volta da 1h30, o barco
atracou em Manacapuru. Não
havia qualquer fiscalização da
Marinha. A reportagem desceu
no porto.
Nas paredes do Capitão Antônio, sem informações sobre a
empresa dona do barco ou dados sobre lotação, apenas uma
placa com a frase: "Deus abençoe quem entra nesse barco,
proteja quem fica e leva em paz
quem sai".
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