São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Para mim fazer"

Há um bom tempo, num importante vestibular, pediu-se aos candidatos que apontassem a frase incorreta. Uma das opções era "Nós é...". Votadíssima, essa opção não era a resposta, já que as reticências indicam que a frase pode não terminar ali.
A continuação pode ser algo como "...que sabemos..." ("Nós é que sabemos como foi difícil aceitar isso", por exemplo). Quem não se lembra da canção "Só Nós Dois É que Sabemos"? Nesses casos, a expressão "é que" é invariável e funciona como elemento de ênfase.
No tal vestibular, quem deu por errada a opção "Nós é..." deixou de levar em conta algo fundamental na análise linguística: a frase inteira, o texto, o contexto.
Quando se pergunta a que classe gramatical pertence a palavra "cantar", quem responde "verbo" pode errar se não levar em conta o emprego da palavra no texto. Em "Meu barracão no morro do Salgueiro tinha o cantar alegre de um viveiro" (da antológica "Chão de Estrelas", de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa), "cantar" não é verbo. É substantivo.
Essa conversa inicial serve para discutir uma questão feita num programa de TV. O candidato deveria apontar o que estava errado. Entre as opções, "para mim fazer" e "para eu fazer". A resposta foi "para mim fazer".
Será que a construção "para mim fazer" é sempre errada? Será que muitos de nossos professores acertaram quando nos deram aquelas lições sobre "eu" e "mim" ("No meio da frase, usa-se eu; no fim da frase, usa-se mim"; "Nunca se usa mim ao lado de infinitivo")? Será que quem dá essas "dicas" não se esquece de um "detalhe": a frase, a estrutura da frase?
Certa vez, participei de um programa de TV ao lado de dois queridos colegas. Ao fazer suas considerações iniciais, um deles disse isto: "É um prazer para mim estar aqui". Minutos depois, a emissora começou a receber mensagens. "Como vocês colocam no ar um professor de português que diz "para mim estar'?", diziam os indignados reclamantes.
Pois o colega em questão não cometeu nenhuma barbaridade; apenas dispôs em ordem inversa os termos da oração que proferiu. Há ainda outras maneiras de dispor os termos: "Estar aqui, para mim, é um prazer"; "Para mim, é um prazer estar aqui". Na ordem direta, teríamos isto: "Estar aqui é um prazer para mim".
A questão, caro leitor, não é de posição; é de função. Não importa onde está o pronome ou que termo está a seu lado. Importa a função que o pronome desempenha.
Na língua padrão, o pronome "eu" funciona basicamente como sujeito, ou seja, "conjuga" o verbo. Em "Ela fez o possível para eu participar do programa", o pronome "eu", bem empregado, é sujeito do verbo "participar", o que se percebe facilmente com o desdobramento do período em "Ela fez o possível para que eu participasse do programa".
Em "É um prazer para mim estar aqui", o pronome "mim" está sintaticamente ligado à palavra "prazer". Não funciona como sujeito, pois. A oração "estar aqui" é que funciona como sujeito da forma verbal "é". Afinal, é o ato de estar que é um prazer para alguém (para mim, para ti etc.).
Moral da história: fora de contexto, não se pode dizer absolutamente nada sobre nada. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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