São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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LAR, DOCE LAR?

Ex-prefeito e seu sucessor e ex-aliado, Celso Pitta, fizeram 14 dos 39 conjuntos habitacionais em lotes dos quais não tinham posse

Cingapura de Maluf invadiu terra privada

SÍLVIA CORRÊA
DA REPORTAGEM LOCAL

A Prefeitura de São Paulo se apossou de áreas privadas sem autorização judicial e sem indenizar os proprietários e construiu sobre elas 14 dos 39 empreendimentos do Projeto Cingapura (habitação popular). As invasões ocorreram nas gestões de Paulo Maluf (PPB) e Celso Pitta (PSL).
Exatamente a metade desses 14 empreendimentos irregulares em favelas contou com US$ 135 milhões de financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), ao qual a prefeitura informou que era dona das terras.
O fato de a administração ter assumido a propriedade de terrenos que não eram dela fez com que essas favelas subissem no ranking das áreas prioritárias a urbanizar.
Com isso -coincidência ou não- o erro da prefeitura fez com que a maior parte das favelas escolhidas para integrar o Projeto Cingapura -uma das bandeiras políticas de Maluf (1993-1996) e Pitta (1997-2000)- estivesse localizada às margens das principais avenidas da cidade.
Uma busca nos Cartórios de Registro de Imóveis evidencia que muitos dos lotes tomados pelos Cingapura têm outros donos.
O do Real Parque (zona sul), por exemplo, à beira da marginal Pinheiros, foi erguido em terras de pelo menos dez donos com os mais diferentes perfis -pessoas físicas e jurídicas com muitos ou poucos imóveis pela cidade. Nesse ritmo, os prejudicados pelas invasões podem ser uma centena.
Alguns desses proprietários, como o pai da desempregada Nadair Pereira, 39 -Nelson, morto em 2001-, foram à Justiça para paralisar as obras ou pedir o dinheiro da desapropriação. Outros, como a Ceagesp, fizeram acordos amigáveis para receber a indenização em parcelas, o que não ocorreu. Um terceiro grupo espera o dinheiro, como a Eletropaulo e a família Fanganiello.
Nos tribunais, a prática é ilegal. Pode ser caracterizada como crime de loteamento clandestino. Esse é o principal motivo pelo qual 7.086 famílias que vivem nesses 14 Cingapura ainda não são donas de seus apartamentos e têm o teto garantido apenas por um Termo de Permissão de Uso -instrumento precário que dá à prefeitura o direito de requisitar o apartamento quando quiser.
"Claro que ninguém vai ser despejado, mas a precariedade da ocupação não respeita o direito à moradia e deixa essa população à mercê dos humores do governo e, o que é pior, permite seu controle político, como já vi ocorrer", diz a advogada Letícia Osório, 33, coordenadora para as Américas da Cohre, uma ONG pelo direito à moradia, com sede na Suíça.
De acordo com o Ministério Público, o uso não autorizado das terras particulares fere a lei 6.766, de 1979. A lei dispensa o poder público de apresentar o título de propriedade da terra para iniciar a construção de habitações populares, mas exige que ele tenha o mínimo: um documento chamado imissão na posse.
O título de propriedade só é obtido ao final de todo o processo de desapropriação, que dura anos.
Já a imissão na posse é uma decisão intermediária do Judiciário para minimizar a incerteza jurídica sobre a posse da terra. Ela costuma sair em meses e, para obtê-la, o poder público deve publicar um decreto tornando a área de interesse social e depositar na Justiça, no prazo de dois anos, o equivalente à avaliação do imóvel.
Sem a posse, pela lei, nada pode ser feito na terra. No caso do Cingapura, no entanto, os decretos foram publicados, mas caducaram, pois os dois anos se passaram sem que o dinheiro fosse depositado. Isso fez com que a terra continuasse sendo privada. Os prédios, porém, foram feitos.
"Não é porque o interesse eventualmente é nobre [fazer habitação popular" que se pode tudo. Não é porque é para pobre que pode ser de qualquer jeito. Isso mostra que o poder público fez o loteamento clandestino do solo -uma prática que ele deve coibir", diz o promotor João Lopes Guimarães Jr., da Habitação.
O Tribunal de Contas do Município diz checar a regularidade desses empreendimentos só até a publicação dos decretos.
No contrato que assinou com o BID em 11 de junho de 96, o ex-prefeito Paulo Maluf previu que as concessões onerosas de uso dos apartamentos durariam 18 meses.
Para isso, nesse prazo a prefeitura deveria ter a propriedade -ou pelo menos a posse- de todas as terras e ter submetido as construções à aprovação. Isso, porém, só ocorreu com um único empreendimento até hoje e, diferentemente do que foi prometido ao BID, alguns Termos de Permissão de Uso já vigoram por oito anos.
Um levantamento feito pela Secretaria Municipal da Habitação mostra que a falta de segurança em relação à posse do apartamento ocupa a terceira posição no ranking de problemas dos conjuntos. Para os moradores, isso só não é pior do que a falta de segurança e de áreas verdes e de lazer.
A prefeitura, hoje administrada pelo PT, iniciou a regularização fundiária dos conjuntos neste ano. Depositou na Justiça R$ 7,581 milhões pela imissão na posse das terras de 5 dos 14 empreendimentos -o dobro de todo o gasto que fora previsto no contrato com o BID com a regularização e o registro dos imóveis.
Outros R$ 5 milhões devem ser desembolsados ainda neste ano só no Real Parque -aumentando em 33% o custo final das unidades. Em 2003, mais R$ 7 milhões.
Se não terminar o processo até o final de 2003, o município poderá ficar impedido de fazer novos contratos com o BID até a regularização da propriedade de todos os imóveis, pois o banco diz não poder prorrogar mais uma vez o prazo -já adiado três vezes sem que nenhum depósito fosse feito.
A Prefeitura de São Paulo avalia que, nesse prazo, conseguirá regularizar totalmente apenas 50% das unidades.
Por intermédio de porta-vozes, os ex-prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta admitiram "falhas eventuais", as quais justificam citando a "necessidade urgente" de se construir as unidades. Alguns dos prédios, no entanto, estão prontos desde 94 sem que nada tenha sido feito para regularizá-los.



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