São Paulo, quinta-feira, 11 de outubro de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

O presente no lugar do futuro

Na semana passada, tratei de um caso de concordância verbal (núcleos do sujeito ligados pela palavra "ou"). O mote foi o bate-boca entre o ex-senador Jader Barbalho e o senador Romeu Tuma (PFL-SP).
Um dos trechos que citei foi este: "Quem vai julgar Vossa Excelência e eu...". O leitor Alencar Floriano pergunta se é correta a forma "vai", ou se deveria ser empregada a forma "irá".
O que temos aí, caro Alencar, é a locução verbal "vai julgar" ("vai" é forma auxiliar, e "julgar", principal), que equivale à forma simples "julgará", do futuro do presente do indicativo.
A substituição de formas do futuro do presente por locuções equivalentes é mais do que consagrada na língua, seja na fala, seja na escrita. Lembro-me de um lema que nós, professores, brandíamos tempos atrás: "Hei de vencer na vida, mesmo sendo professor". A locução "hei de vencer" é equivalente a "vencerei", do futuro do presente de "vencer".
Pois bem, caro Alencar, se o que se quer é substituir o futuro, é normal que não se use o futuro, ou seja, que não se substitua "julgará" por "irá julgar", mas por "vai julgar", "há de julgar" etc.
Formas como "irá fazer", "irá julgar" e semelhantes causam alguma discussão. A maioria dos gramáticos as condena ou não as inclui entre as que podem substituir a forma simples do futuro, mas há quem recolha importantes registros delas.
Em seu "Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa", o professor Domingos Paschoal Cegalla considera equivalentes construções como "vai faltar luz", "irá faltar luz" e "faltará luz".
Ao tratar do outro futuro do indicativo (o do pretérito), Cegalla cita, entre outros, exemplos de Aníbal Machado ("E disse que iria procurar a companheira...") e Fernando Namora ("Julgava-se que tudo iria acabar"), em que, respectivamente, "iria procurar" equivale a "ia procurar" ou "procuraria", e "iria acabar" equivale a "ia acabar" ou "acabaria".
O que se pode dizer, caro Alencar, é que o uso do verbo "ir" no presente do indicativo é incontestavelmente lícito nas locuções que substituem o futuro do presente.
É bom aproveitar a ocasião para lembrar que, na escola, muitas vezes se estudam os verbos de forma limitada. Do presente, por exemplo, muitas vezes se diz que "é o tempo que indica o fato que ocorre no momento da fala".
Isso não deixa de ser verdadeiro, mas é apenas parte da história. Depois de um estafante dia de trabalho, precedido de uma noite maldormida, alguém que diga "Tenho sono" expressa fato que de fato ocorre no momento da fala. O presente foi aí empregado com seu valor específico.
E quem diz "Durmo oito horas por dia" está dormindo quando emprega o presente do indicativo de "dormir"? Nesse caso, é óbvio que o presente não indica "o fato que ocorre no momento da fala", mas um hábito, uma rotina.
Não se podem analisar os tempos verbais apenas por seus valores específicos. Com o presente, por exemplo, pode-se indicar o presente propriamente dito, o passado ("Em 1500, Cabral chega ao Brasil") ou o futuro ("Faço isso amanhã"). Há mais a dizer, mas o espaço acabou. Prometo voltar ao assunto. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail - inculta@uol.com.br


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