São Paulo, segunda-feira, 11 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Miau

 Toda noite a feirante Satiko Motoie Simmio, 56, vai ao parque Tenente Siqueira Campos, o Trianon, na av.Paulista (zona oeste de SP) alimentar os gatos que vivem no local -cerca de 25, diz ela. A feirante gasta R$ 800 por mês na alimentação dos gatos. Cotidiano, 4.out.2004

Menino de rua, sem pai nem mãe, ele era pobre, era feio, era analfabeto. Mas possuía uma habilidade da qual se orgulhava: imitava à perfeição o miado de um gato. Certo, muita gente faz isso, mas no caso dele era arte, arte pura. Tão autêntico era o seu miado que fazia os cachorros da vizinhança latirem, irritados. Daí o seu apelido: Miau. Era como ele mesmo se apresentava; o nome verdadeiro raramente lembrava.
Vida difícil, a dele. Dormia na rua, vestia trapos, muitas vezes passava fome. Arranjar comida era sua preocupação maior, uma preocupação que ressurgia a cada manhã.
Foi então que ouviu falar na senhora que alimentava gatos. Uma senhora muito boa, que proporcionava aos felinos do Trianon generosas rações.
Aquilo lhe deu uma idéia. Naquela mesma noite foi até o parque, escondeu-se atrás de um arbusto. Pouco depois apareceu uma senhora, trazendo um cesto. É ela, pensou, e de imediato começou a miar, um miado inspirado, o melhor miado que já produzira. A senhora deteve-se; olhou em direção ao arbusto, não viu gato algum, mas convencida de que ali deveria estar um felino faminto depositou no solo uma generosa ração. Miau esperou que ela se afastasse e, mais que depressa, atirou-se ao alimento. Era comida para gato, claro, mas muito saborosa.
Desde então ele tem repetido a manobra todas as noites. Não passa mais fome e até engordou um bocado. Mas enfrenta dois problemas.
O primeiro é o dos gatos propriamente ditos, que não estão gostando da concorrência e mais de uma vez se dispuseram a atacá-lo. Deles, porém, Miau não tem medo; além de miar, sabe rosnar e já mostrou, rosnando, que o dono do pedaço agora é ele.
O segundo problema resulta de uma inquietação quanto ao futuro. A senhora é absolutamente fiel aos animais e todas as noites cumpre o ritual de alimentá-los. Mas por quanto tempo fará isso? E o que acontecerá se ela um dia ficar doente ou tiver de viajar? Quem providenciará a ração de comida?
Para esta interrogação o garoto não tem resposta. Já observou, contudo, que o lugar está cheio de camundongos gordinhos e lentos. Com um pouco de treino conseguirá apanhar cinco ou seis deles numa noite. Para quem se chama Miau não deve ser difícil.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

Texto Anterior: Homem engorda mais rápido que mulher
Próximo Texto: Consumo: Gerente reclama de falta de peças para seu fogão Bosch
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.