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MOACYR SCLIAR
Miau
Toda noite a feirante Satiko Motoie
Simmio, 56, vai ao parque Tenente
Siqueira Campos, o Trianon, na
av.Paulista (zona oeste de SP) alimentar os gatos que vivem no local
-cerca de 25, diz ela. A feirante gasta R$ 800 por mês na alimentação
dos gatos. Cotidiano, 4.out.2004
Menino de rua, sem pai
nem mãe, ele era pobre, era
feio, era analfabeto. Mas possuía
uma habilidade da qual se orgulhava: imitava à perfeição o miado de um gato. Certo, muita gente
faz isso, mas no caso dele era arte,
arte pura. Tão autêntico era o seu
miado que fazia os cachorros da
vizinhança latirem, irritados. Daí
o seu apelido: Miau. Era como ele
mesmo se apresentava; o nome
verdadeiro raramente lembrava.
Vida difícil, a dele. Dormia na
rua, vestia trapos, muitas vezes
passava fome. Arranjar comida
era sua preocupação maior, uma
preocupação que ressurgia a cada
manhã.
Foi então que ouviu falar na senhora que alimentava gatos.
Uma senhora muito boa, que proporcionava aos felinos do Trianon generosas rações.
Aquilo lhe deu uma idéia. Naquela mesma noite foi até o parque, escondeu-se atrás de um arbusto. Pouco depois apareceu
uma senhora, trazendo um cesto.
É ela, pensou, e de imediato começou a miar, um miado inspirado, o melhor miado que já produzira. A senhora deteve-se; olhou
em direção ao arbusto, não viu
gato algum, mas convencida de
que ali deveria estar um felino faminto depositou no solo uma generosa ração. Miau esperou que
ela se afastasse e, mais que depressa, atirou-se ao alimento. Era
comida para gato, claro, mas
muito saborosa.
Desde então ele tem repetido a
manobra todas as noites. Não
passa mais fome e até engordou
um bocado. Mas enfrenta dois
problemas.
O primeiro é o dos gatos propriamente ditos, que não estão
gostando da concorrência e mais
de uma vez se dispuseram a atacá-lo. Deles, porém, Miau não
tem medo; além de miar, sabe
rosnar e já mostrou, rosnando,
que o dono do pedaço agora é ele.
O segundo problema resulta de
uma inquietação quanto ao futuro. A senhora é absolutamente fiel
aos animais e todas as noites
cumpre o ritual de alimentá-los.
Mas por quanto tempo fará isso?
E o que acontecerá se ela um dia
ficar doente ou tiver de viajar?
Quem providenciará a ração de
comida?
Para esta interrogação o garoto
não tem resposta. Já observou,
contudo, que o lugar está cheio de
camundongos gordinhos e lentos.
Com um pouco de treino conseguirá apanhar cinco ou seis deles
numa noite. Para quem se chama
Miau não deve ser difícil.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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