São Paulo, domingo, 11 de outubro de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
Quantas crianças valem um cachorro?


Com 40 mil m2 de área verde, um hotel no interior de São Paulo oferece chalés individuais, alimentação três vezes ao dia, brincadeiras e passeios com guias -a diária sai por R$ 25,00.
Nem é necessário dirigir até o local: o traslado custa apenas R$ 40,00.
Há, porém, um inconveniente. É proibida a entrada de seres humanos. Só cachorros podem entrar.
Com o nome de "Clube de Cãompo", o hotel dá direito a veterinário, banhos aromatizados e até a bebedouro individual.
Esse recanto é, obviamente, um luxo.
Os especialistas comentam que para, manter um cão com dignidade, gastam-se em média R$ 60,00 mensais, entre ração, remédio e veterinário. O que dá R$ 720,00 anuais.
Mas se compararmos com o padrão de vida da criança brasileira, esse valor também é um luxo.
De acordo com o IBGE, 40% dos brasileiros com até 14 anos vivem em famílias com renda per capita de meio salário mínimo.
Ou seja, nem sequer alcançam a despesa da dignidade canina.
Com seu dia comemorado amanhã, a criança é o mais preciso retrato do Brasil neste final de século-se, de um lado, somos muito melhores do que fomos, estamos, de outro, péssimos para o que poderíamos e deveríamos ser.


Basta comparar os gastos das escolas privadas com as públicas para perceber o abismo.
Uma escola privada de qualidade custa, no geral, R$ 310 mensais; menos do que se gasta na educação pública da Europa e Estados Unidos, próximo dos R$ 550,00.
O gasto médio de um aluno de escola pública brasileira é R$ 50,00 por mês, o que dá R$ 600,00 por ano -menos que o cãozinho.
E, notem, já houve grandes avanços.


Com base em levantamentos do Dieese, a Folha divulga hoje o "índice criança" -o custo para se manter uma criança.
Uma cesta básica mensal que incluísse de uma escola de qualidade, vestimenta e inglês, sai por R$ 660.
É uma cesta básica indigente. Nem engloba alimentação, dentista, médico ou lazer. Nem estamos jogando aqui despesas comuns na classe média, como terapeuta e aulas particulares.
Parece muito, claro. Mas não é. As melhores escolas privadas chegam a cobrar a mensalidade de R$ 800,00.
O "índice criança" dá a medida para se criar um indivíduo capaz de desenvolver suas potencialidades, usufruir dos benefícios culturais (entre eles a informática) e tentar disputar com competitividade no mercado de trabalho.
Significa, hoje, ter algum curso de formação superior, dominar a informática e inglês.


A distância entre o que somos e o que deveríamos ser é visível quando levantamos a renda salarial na cidade mais rica do país -é, justamente, a distância que nos separa de uma nação civilizada.
Segundo o Dieese, a renda média de uma família em São Paulo é R$ 1.350,00.
Suponha-se que, daquela cesta, o casal escolhesse apenas uma escola de qualidade para os filhos.
Um casal padrão com dois filhos teria de desembolsar R$ 1.320,00 mensais, separando quase a totalidade de seus rendimentos para formar as crianças.
Sobrariam menos de R$ 30,00 para transporte, aluguel, alimentação e saúde.


Censo divulgado no mês passado mostrou que 46,7% das escolas de ensino fundamental e 21% das de 2º grau com mais de cem alunos não têm telefone.
Quando existe telefone, ele é utilizado para a administração.
Os alunos dessas escolas estão cortados, portanto, da alfabetização digital, tornando-se analfabetos funcionais.
Telefone parece mesmo um luxo, quando se olham os demais dados do censo.
São poucas as bibliotecas. E muito menos os laboratórios de informática e ciências.
Aliás, uma razoável parcela das escolas não tem energia elétrica, filtro ou água encanada.


Feliz coincidência que o Dia da Criança seja comemorado na mesma semana do Dia do Professor.
O melhor caminho para se aprimorar o nível de vida da população, distribuir renda e alargar a democracia é garantir uma escola pública de qualidade -meta impossível sem investimento maciço no professor.
O dia em que os sindicalistas descobrirem essa obviedade vão lutar tanto por melhores escolas quanto por melhores salários.


PS - Numa tentativa de sistematizar minha vivência em projetos de educação em cidadania e os impactos das novas tecnologias na formação no aprendizado e formação profissional, concluí na semana passada um ensaio sobre o professor do futuro. É, em boa parte, resultado de minha experiência em Nova York.
Para comemorar o Dia do Professor, coloquei esse ensaio na Internet, no seguinte endereço: www.aprendiz.com.br


E-mail: gdimen@uol.com.br



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