São Paulo, quarta-feira, 11 de novembro de 2009

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GILBERTO DIMENSTEIN

A vida é passageira


Colecionar cenas do cotidiano e transformá-las em textos já fazia parte da vida profissional de Daisy

DAISY Fonseca já tinha 45 anos quando, enfim, conseguiu tirar sua carteira de motorista. Não adiantou. Naquele mesmo ano, seu marido morreu e as finanças familiares entraram em crise. Nunca teve carro. Preferiu andar sempre de ônibus, onde, entre as várias paradas, descobriu uma inspiração literária. Sentia-se dentro de um cenário, formado invariavelmente por duas fileiras de bancos, um corredor central, duas portas e muitas janelas por testemunhas, tudo isso carregando seus personagens.
"As histórias vão se desenrolando nesse palco improvisado. Alguém, por ordem de não sei qual diretor, dá a partida na cena, puxando a ponta do fio de um imenso novelo de emoções", relata Daisy, agora com 84 anos e inveterada passageira.
Foi nesse cenário que ouviu frases duras do tipo: "Como é? Vai subir ou não? Mexe essas pernas, ô coroa".
Ou cenas como um bilhete deixado por um anônimo para uma mulher que, mão cobrindo o rosto, chorava: "Se você continuar a chorar, suas lágrimas não vão permitir que você veja as estrelas".

 

Seus personagens são simples. É uma mulher que, no trajeto do ônibus, a caminho do hospital, faz crochê para o filho. Existe o cobrador galanteador, a velhinha que, indignada, dá lições de conduta ao motorista. Muitos, elas observa a distância, outros se sentam a seu lado.
Um mendigo, com um forte odor, estava em seu banco. O cheiro era difícil de suportar. Foi salva por Tolstói, o escritor russo, que, num de seus textos, coloca Jesus na pele de um mendigo testando a tolerância dos homens. "Talvez ali fosse também um teste", reconfortou-se e aguentou até seu ponto.
Colecionar cenas do cotidiano e transformá-las em textos já fazia parte da vida profissional de Daisy há muito tempo. Durante 15 anos, ela preparou uma crônica intitulada "De mulher para mulher", lida diariamente por Hebe Camargo, que naquela época trabalhava no rádio.
Mais tarde, manteve uma página feminina no jornal Shopping News. Com a morte do marido, teve de trabalhar em mais de um emprego e, como morava numa região central, considerou melhor andar só de ônibus do que ter de pagar estacionamentos e ficar desesperada no trânsito. "Ouve-se falar de tudo. Da receita de bolo de fubá, do conselho sentimental da vovó, até de receita contra chulé ou insônia."

 

No dia do aniversário de Daisy, a funcionária de uma empresa de encadernação (Elisa Hanaeiferi) deu-lhe de presente um livro artesanal -único exemplar- com as crônicas inspiradas no ônibus. Até então, eram apenas folhas esparsas. Seu projeto é lançar o livro. Por saber que não tem todo o tempo para esperar, já que está com 84 anos, apesar da boa saúde, ela brinca: "Como você sabe, a vida é passageira".

 
PS - Enquanto o lançamento não vem, coloquei trechos do livro, intitulado "São Paulo, meu cenário", no www.catracalivre.com.br.

gdimen@uol.com.br


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