São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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LETRAS JURÍDICAS

Direitos fundamentais ameaçados

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

"O Estado não existe para ser senhor autocrático -porque acima do princípio democrático- dos cidadãos, mas para ser apenas o representante da sociedade e para atender às demandas sociais e econômicas desta."
As palavras entre aspas foram escritas por Paulo Napoleão Nogueira da Silva em livro recente ("Princípio Democrático e Estado Legal", Forense, 197 páginas). Sintetizam a base das relações entre governos e cidadãos, uma vez que aqueles têm o dever de assegurar o bem-estar destes, para estabelecer melhores condições de vida em sociedade. O governo serve a cidadania.
A Constituição brasileira aponta nesse sentido ao relacionar Estado Democrático de Direito (em maiúsculas, no artigo 1º), com seus fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Depois da soberania, que consiste na aplicação exclusiva de nossas leis no território nacional, não vem o governo. Vem a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Quando os princípios da democracia são subvertidos pela atuação dos governantes, percebe-se que suas convicções democráticas foram abaladas por influência do próprio poder, em efeito que lord Acton definiu há um século. Facilita-se o Estado policial. Veja o que acontece nos Estados Unidos. A nação-exemplo da mais tradicional prática democrática, com a desculpa de que medidas enérgicas são exigidas a curtíssimo prazo, concedeu ao presidente George W. Bush poderes excepcionais. Permitem-lhe obter desde o grampeamento de telefones entre clientes e advogados até o julgamento sumário de estrangeiros, em cortes militares, a condenação à morte e a execução. Daí às medidas que violam todos os direitos individuais, o espaço é mínimo.
Se, na nação-símbolo da democracia, um presidente de duvidosa eleição limita a liberdade de imprensa, assume poderes excepcionais que interferem na privacidade, na liberdade e na vida dos seus habitantes, imagine no Brasil, em que a democracia não tem a mesma força histórica e política na consciência do povo. Temos de nos preocupar. Estado democrático de Direito é inconfundível com Estado de Direito, até pela facilidade deste em descambar para o Estado da lei dos poderosos, como aconteceu nos anos 60 a 80. As leis editadas eram da conveniência do poder dominante. Quando surgiam queixas contra o abuso estatal, o governante se defendia dizendo que cumpria a lei.
Devemos repensar o mito da sinonímia entre a coisa pública (o que é de todos) e o interesse público (o que os governos dizem defender). O Judiciário tem aceitado a presunção (frequentemente errada) de qualidade e pureza dos atos da administração pública. O momento de aparente confronto entre o Executivo e a serenidade do Judiciário exige dos juízes a coragem de avaliar os atos da administração em sua substância, e não como algo a aceitar sem juízo crítico da legalidade substancial. O adjetivo "democrático", na definição do artigo 1º, exige a manifestação das resistências culturais. A reversão dos direitos fundamentais, ora em curso, impõe a atenção de todos. A todos. Lembremos de novo: o Estado existe para representar a coletividade. Representar não é sinônimo de asfixiar com políticas de dominação.


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