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LETRAS JURÍDICAS
Direitos fundamentais ameaçados
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
"O Estado não existe para ser senhor autocrático
-porque acima do princípio democrático- dos cidadãos, mas
para ser apenas o representante
da sociedade e para atender às
demandas sociais e econômicas
desta."
As palavras entre aspas foram
escritas por Paulo Napoleão Nogueira da Silva em livro recente
("Princípio Democrático e Estado
Legal", Forense, 197 páginas).
Sintetizam a base das relações entre governos e cidadãos, uma vez
que aqueles têm o dever de assegurar o bem-estar destes, para estabelecer melhores condições de
vida em sociedade. O governo serve a cidadania.
A Constituição brasileira aponta nesse sentido ao relacionar Estado Democrático de Direito (em
maiúsculas, no artigo 1º), com
seus fundamentos: a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Depois da soberania, que consiste na aplicação
exclusiva de nossas leis no território nacional, não vem o governo.
Vem a cidadania e a dignidade
da pessoa humana.
Quando os princípios da democracia são subvertidos pela atuação dos governantes, percebe-se
que suas convicções democráticas
foram abaladas por influência do
próprio poder, em efeito que lord
Acton definiu há um século. Facilita-se o Estado policial. Veja o
que acontece nos Estados Unidos.
A nação-exemplo da mais tradicional prática democrática, com
a desculpa de que medidas enérgicas são exigidas a curtíssimo
prazo, concedeu ao presidente
George W. Bush poderes excepcionais. Permitem-lhe obter desde
o grampeamento de telefones entre clientes e advogados até o julgamento sumário de estrangeiros,
em cortes militares, a condenação
à morte e a execução. Daí às medidas que violam todos os direitos
individuais, o espaço é mínimo.
Se, na nação-símbolo da democracia, um presidente de duvidosa eleição limita a liberdade de
imprensa, assume poderes excepcionais que interferem na privacidade, na liberdade e na vida dos
seus habitantes, imagine no Brasil, em que a democracia não tem
a mesma força histórica e política
na consciência do povo. Temos de
nos preocupar. Estado democrático de Direito é inconfundível com
Estado de Direito, até pela facilidade deste em descambar para o
Estado da lei dos poderosos, como
aconteceu nos anos 60 a 80. As leis
editadas eram da conveniência
do poder dominante. Quando
surgiam queixas contra o abuso
estatal, o governante se defendia
dizendo que cumpria a lei.
Devemos repensar o mito da sinonímia entre a coisa pública (o
que é de todos) e o interesse público (o que os governos dizem defender). O Judiciário tem aceitado a presunção (frequentemente
errada) de qualidade e pureza
dos atos da administração pública. O momento de aparente confronto entre o Executivo e a serenidade do Judiciário exige dos
juízes a coragem de avaliar os
atos da administração em sua
substância, e não como algo a
aceitar sem juízo crítico da legalidade substancial. O adjetivo "democrático", na definição do artigo 1º, exige a manifestação das resistências culturais. A reversão
dos direitos fundamentais, ora
em curso, impõe a atenção de todos. A todos. Lembremos de novo:
o Estado existe para representar a
coletividade. Representar não é
sinônimo de asfixiar com políticas de dominação.
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