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PASQUALE CIPRO NETO
"O Getúlio matou o saci"
A primeira coisa que faço
quando entro num avião da
TAM é procurar o delicioso "Almanaque Brasil de Cultura Popular", editado por Elifas Andreato
e distribuído aos passageiros dessa empresa aérea.
Na semana passada, numa viagem de Brasília a São Paulo, fui
golpeado por "Sinceramente,
Brasil!", emocionante texto do
próprio Elifas. Diferentemente do
que o título talvez sugira a todos
os que fomos humilhados pelo
torpe ufanismo dos tristes tempos
da ditadura, que deixou fantasmas dos quais muitos de nós ainda não nos livramos, não se trata
de mero libelo pseudopatriótico.
Elifas não é gente dessa estampa, como diria mestre Paulo Vanzolini. Trata-se do relato maduro
e sensível da "primeira notícia do
Brasil", que lhe chegou "a um roçado no extremo norte do Paraná", onde o menino Elifas vivia
com a família, cultivando café.
Ao voltar de mais um dia de
trabalho, Elifas e seus companheiros mirins não encontraram
a avó Maria, "portuguesa risonha
e religiosa", que sempre os aguardava na varanda para abençoá-los pelo dia trabalhado.
A hora do jantar já tinha passado, quando, rezando, vestida de
luto e com um véu preto que lhe
cobria o rosto, a avó chegou à cozinha e deu a notícia: "O Getúlio
matou-se a si". "Exultei", escreve
Elifas, que entendera "O Getúlio
matou o saci". "Tinha pavor do
saci e saber que ele estava morto
me alegrava", explica Elifas.
A forma "matou-se a si", empregada pela avó portuguesa, encerra um dos interessantes casos
de pleonasmo de nosso idioma.
Quando se fala em "pleonasmo",
muita gente logo pensa em "subir
para cima", "descer para baixo"
ou "entrar para dentro", casos em
que a redundância de termos não
confere à frase elegância, clareza
ou vigor. Mas o pleonasmo não é
necessariamente vicioso. No caso
de "matou-se a si", temos a forma
átona "se" (reflexiva) revigorada
por sua equivalente tônica, "a si".
Isso é comum em vários registros linguísticos, orais e escritos.
"Pobre te vejo a ti", escreveu o
baiano Gregório de Matos. Na
Bahia, por sinal, esse caso é comum também na oralidade, que
ainda guarda traços barrocos.
Em "Ela É Carioca", de Tom e
Vinicius, temos outro exemplo:
"Ela é meu amor, só me vê a mim,
a mim que vivi para encontrar na
luz do seu olhar a paz que sonhei...". A cena se repete: a forma
átona "me" é reforçada pela equivalente tônica ("a mim").
Uma das mais conhecidas frases
atribuídas a Sócrates (o filósofo, é
claro) em português é simplesmente "Conhece-te a ti mesmo".
Agora, as formas átonas e tônicas
correspondentes são "te" e "a ti".
Essa estrutura é tão comum que
gerou até o bem-humorado título
de uma obra de auto-ajuda de
Agamenon Mendes Pedreira,
pseudônimo do pessoal do Casseta & Planeta. O livro se chama
"Ajuda-te a Mim Mesmo". Eis
um belo exemplo de como valer-se do conhecimento de uma estrutura linguística para, subvertendo-a, atingir determinados fins.
Um exemplo recente desse tipo
de subversão é a genial "Fora de
Si", de Arnaldo Antunes. O texto
merece análise detalhada, o que
prometo fazer brevemente. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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