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São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 2003

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MOACYR SCLIAR

A inconstância dos felinos

Gato recebe mais de US$ 720 mil de herança na Inglaterra. Um gato de rua recebeu uma casa no norte de Londres e um fundo de investimentos de 100 mil libras (cerca de US$ 160 mil) de herança de uma id Estimativas indicam que Tinker -o nome do gato- tem oito anos. Ele se tornou amigo de Margaret Layne, 89 anos, pouco antes de ela morrer, no ano passado. O testamento dela, que acaba de ser divulgado, estabelece que, até a morte, Tinker deve ficar na casa avaliada em 350 mil libras (pouco mais de US$ 560 mil). Margaret Layne não tinha filhos. O fundo de investimentos para o gato está em nome de Ann e Eugene Wheatley, vizinhos da senhora que morreu.
Folha Online, 7.mai.2003

Quando ele leu a notícia sobre o gato inglês que tinha recebido uma herança, seu coração se acelerou. Ali estava, concluiu de imediato, a solução para os seus problemas financeiros, que não eram poucos. Mais do que isso, a notícia representava uma verdadeira loteria, muito melhor que aquela loteria que os lavadores de dinheiro brasileiros ganham com tanta facilidade.
De gatos, ele entendia tudo. Criava-os desde criança, apesar da oposição dos pais, que, nisso, como em muitas outras coisas, tinham errado grosseiramente. Conhecia os costumes dos felinos, suas manhas, suas paixões. E usaria esses conhecimentos para conquistar o gato Tinker e, assim, se apossar de sua herança. Com o que passaria a viver na Inglaterra, no Primeiro Mundo. E seria feliz para sempre.
O plano era relativamente simples. Tratava-se de fazer com que Tinker se apaixonasse perdidamente por uma gata e que a acolhesse em sua casa (bem como ao dono da gata, claro). Ele tinha essa gata, a formosa e sensual Samantha (assim mesmo, com th -o nome inglês era mais uma indicação do destino). De modo que começou a trabalhar imediatamente. O primeiro passo consistia em fazer com que Samantha demonstrasse afeto por Tinker. Para isso iniciou um treinamento pavloviano: mostrava à gata fotos ampliadas de Tinker. Se ela ronronasse amorosamente, ganhava um belo pedaço de carne. Samantha, que não era burra, logo descobriu o que o seu dono queria. Suas manifestações de amor por Tinker, ou pela foto deste, chegavam a ser comoventes.
O segundo passo era aproximar-se do felino inglês. Para isso entrou em contato com a família que estava cuidando do bichano. Intitulando-se jornalista, disse que pretendia fazer uma reportagem a respeito. Como esperava, recebeu sinal verde. Mas não conseguiu partir imediatamente, pela simples razão de que não tinha dinheiro para a passagem. Um parente ficou de emprestar-lhe a grana, mas, enquanto isso não acontecia, notou que Samantha começou a portar-se de maneira diferente. Suspeitas surgiram nele, suspeitas que rapidamente se confirmaram: ela estava prenhe. E o pior é que o pai não era sequer parecido com o belo Tinker: era um gato vagabundo, desses que vagueiam por qualquer cidade do Brasil. Samantha não tardou a fugir com o sedutor. Ele nem se importou. A verdade é que tinha aprendido sua lição. Os gatos são inconstantes. Inconfiáveis. Quase tão inconfiáveis quanto os seres humanos.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.



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