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MOACYR SCLIAR
A inconstância dos felinos
Gato recebe mais de US$ 720 mil de
herança na Inglaterra. Um gato de
rua recebeu uma casa no norte de
Londres e um fundo de investimentos de 100 mil libras (cerca de US$
160 mil) de herança de uma id
Estimativas indicam que Tinker -o
nome do gato- tem oito anos. Ele se
tornou amigo de Margaret Layne, 89
anos, pouco antes de ela morrer, no
ano passado. O testamento dela, que
acaba de ser divulgado, estabelece
que, até a morte, Tinker deve ficar na
casa avaliada em 350 mil libras
(pouco mais de US$ 560 mil). Margaret Layne não tinha filhos. O fundo
de investimentos para o gato está em
nome de Ann e Eugene Wheatley, vizinhos da senhora que morreu.
Folha Online, 7.mai.2003
Quando ele leu a notícia
sobre o gato inglês que tinha
recebido uma herança, seu coração se acelerou. Ali estava, concluiu de imediato, a solução para
os seus problemas financeiros,
que não eram poucos. Mais do
que isso, a notícia representava
uma verdadeira loteria, muito
melhor que aquela loteria que os
lavadores de dinheiro brasileiros
ganham com tanta facilidade.
De gatos, ele entendia tudo.
Criava-os desde criança, apesar
da oposição dos pais, que, nisso,
como em muitas outras coisas, tinham errado grosseiramente. Conhecia os costumes dos felinos,
suas manhas, suas paixões. E usaria esses conhecimentos para conquistar o gato Tinker e, assim, se
apossar de sua herança. Com o
que passaria a viver na Inglaterra, no Primeiro Mundo. E seria
feliz para sempre.
O plano era relativamente simples. Tratava-se de fazer com que
Tinker se apaixonasse perdidamente por uma gata e que a acolhesse em sua casa (bem como ao
dono da gata, claro). Ele tinha essa gata, a formosa e sensual Samantha (assim mesmo, com th
-o nome inglês era mais uma indicação do destino). De modo que
começou a trabalhar imediatamente. O primeiro passo consistia
em fazer com que Samantha demonstrasse afeto por Tinker. Para
isso iniciou um treinamento pavloviano: mostrava à gata fotos
ampliadas de Tinker. Se ela ronronasse amorosamente, ganhava um belo pedaço de carne. Samantha, que não era burra, logo
descobriu o que o seu dono queria. Suas manifestações de amor
por Tinker, ou pela foto deste,
chegavam a ser comoventes.
O segundo passo era aproximar-se do felino inglês. Para isso
entrou em contato com a família
que estava cuidando do bichano.
Intitulando-se jornalista, disse
que pretendia fazer uma reportagem a respeito. Como esperava,
recebeu sinal verde. Mas não conseguiu partir imediatamente, pela simples razão de que não tinha
dinheiro para a passagem. Um
parente ficou de emprestar-lhe a
grana, mas, enquanto isso não
acontecia, notou que Samantha
começou a portar-se de maneira
diferente. Suspeitas surgiram nele, suspeitas que rapidamente se
confirmaram: ela estava prenhe.
E o pior é que o pai não era sequer
parecido com o belo Tinker: era
um gato vagabundo, desses que
vagueiam por qualquer cidade do
Brasil. Samantha não tardou a
fugir com o sedutor. Ele nem se
importou. A verdade é que tinha
aprendido sua lição. Os gatos são
inconstantes. Inconfiáveis. Quase
tão inconfiáveis quanto os seres
humanos.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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