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PASQUALE CIPRO NETO
"Quando há intenção de matar"
Definir "crime doloso" como "aquele em que há intenção de matar" constitui puro exercício de reducionismo
NO MEIO JORNALÍSTICO, é normal a busca do didatismo,
que basicamente consiste
em "traduzir" para o leitor o que há
de mais nebuloso ou técnico no que
se noticia. Assim, num texto sobre
economia, o articulista pode explicar o que é dumping ("venda abaixo
do custo para desovar estoques ou
para afastar os concorrentes").
Na verdade, o redator muitas vezes fica entre a cruz e a espada. Se
"traduz" determinados termos, incomoda os iniciados no assunto; se
não os "traduz", corre o risco de não
ganhar possíveis novos leitores.
Às vezes, o apego ao didatismo estrito gera exageros. Num texto sobre
futebol, por exemplo, explicar que o
centroavante é o jogador que... Bem,
é melhor parar. Isso equivaleria a
explicar o que faz o presidente de
uma nação que vive sob o regime
presidencialista. E não vá pensar
que nunca se fez isso no jornalismo.
Exemplos não faltam -às carradas.
Volta e meia, jornalistas se põem a
"traduzir" certos termos ou expressões do mundo jurídico. Um dos
clássicos casos é o da tentativa de explicar ao leitor ou ao telespectador o
que vem a ser um crime doloso. Lê-se ou ouve-se algo semelhante a isto:
"O Ministério Público pode oferecer
denúncia contra Fulano de Tal por
crime doloso, aquele em que há intenção de matar". Já ouvi/li isso em
relação aos pilotos do Legacy que
derrubou o 737-800 da Gol (note como estabeleci a concordância, por
favor: "derrubou", e não "derrubaram" -não posso julgar ninguém).
A levar em conta essa "definição"
de crime doloso, os patrícios de
Bush poderão ser acusados de terem
querido matar os 154 ocupantes do
737-800, se ficar provado que desligaram o tal transponder, desrespeitaram o plano de vôo etc. Eta nós!
Não sou advogado, não, caro leitor; só tenho o hábito de consultar
dicionários etc. Vamos lá: o crime é
doloso quando existe dolo (cuja
pronúncia erudita é "dólo"), isto é,
quando o agente quer diretamente
o resultado ilícito ou assume o risco de produzi-lo. E certamente é
na segunda hipótese que, questões
políticas à parte, poderiam ser enquadrados os patrícios de Bush, se
ficasse comprovado que desligaram o equipamento e/ ou desrespeitaram o plano de vôo etc. Como
se vê, é puro reducionismo definir
"crime doloso" como "aquele em
que há intenção de matar".
Outra dupla do território jurídico que causa problemas é formada
por "furtar" e "roubar", que, para
desespero de muitos juristas, os dicionários dão como sinônimos. O
"Aurélio" dá como primeira definição de "roubar" a que pertence à
linguagem jurídica: "Subtrair (coisa alheia móvel) para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou
violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido
à impossibilidade de resistir". Logo
na segunda definição, dá "roubar"
e "furtar" como sinônimos.
Em "furtar", a primeira definição
do "Aurélio" é semelhante à do
"Houaiss": "Apoderar-se (de coisa
alheia móvel); subtrair fraudulentamente (coisa alheia); roubar"
("Aurélio"); "Apossar-se de (coisa
alheia); roubar" ("Houaiss").
O fato é que é preciso tomar cuidado com a definição de certos termos, sobretudo quando estão em
jogo conceitos que os leitores/ouvintes não dominam. Devagar com
o andor, meus caros. É isso.
inculta@uol.com.br
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