São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quando há intenção de matar"

Definir "crime doloso" como "aquele em que há intenção de matar" constitui puro exercício de reducionismo

NO MEIO JORNALÍSTICO, é normal a busca do didatismo, que basicamente consiste em "traduzir" para o leitor o que há de mais nebuloso ou técnico no que se noticia. Assim, num texto sobre economia, o articulista pode explicar o que é dumping ("venda abaixo do custo para desovar estoques ou para afastar os concorrentes").
Na verdade, o redator muitas vezes fica entre a cruz e a espada. Se "traduz" determinados termos, incomoda os iniciados no assunto; se não os "traduz", corre o risco de não ganhar possíveis novos leitores.
Às vezes, o apego ao didatismo estrito gera exageros. Num texto sobre futebol, por exemplo, explicar que o centroavante é o jogador que... Bem, é melhor parar. Isso equivaleria a explicar o que faz o presidente de uma nação que vive sob o regime presidencialista. E não vá pensar que nunca se fez isso no jornalismo.
Exemplos não faltam -às carradas. Volta e meia, jornalistas se põem a "traduzir" certos termos ou expressões do mundo jurídico. Um dos clássicos casos é o da tentativa de explicar ao leitor ou ao telespectador o que vem a ser um crime doloso. Lê-se ou ouve-se algo semelhante a isto: "O Ministério Público pode oferecer denúncia contra Fulano de Tal por crime doloso, aquele em que há intenção de matar". Já ouvi/li isso em relação aos pilotos do Legacy que derrubou o 737-800 da Gol (note como estabeleci a concordância, por favor: "derrubou", e não "derrubaram" -não posso julgar ninguém).
A levar em conta essa "definição" de crime doloso, os patrícios de Bush poderão ser acusados de terem querido matar os 154 ocupantes do 737-800, se ficar provado que desligaram o tal transponder, desrespeitaram o plano de vôo etc. Eta nós!
Não sou advogado, não, caro leitor; só tenho o hábito de consultar dicionários etc. Vamos lá: o crime é doloso quando existe dolo (cuja pronúncia erudita é "dólo"), isto é, quando o agente quer diretamente o resultado ilícito ou assume o risco de produzi-lo. E certamente é na segunda hipótese que, questões políticas à parte, poderiam ser enquadrados os patrícios de Bush, se ficasse comprovado que desligaram o equipamento e/ ou desrespeitaram o plano de vôo etc. Como se vê, é puro reducionismo definir "crime doloso" como "aquele em que há intenção de matar".
Outra dupla do território jurídico que causa problemas é formada por "furtar" e "roubar", que, para desespero de muitos juristas, os dicionários dão como sinônimos. O "Aurélio" dá como primeira definição de "roubar" a que pertence à linguagem jurídica: "Subtrair (coisa alheia móvel) para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistir". Logo na segunda definição, dá "roubar" e "furtar" como sinônimos.
Em "furtar", a primeira definição do "Aurélio" é semelhante à do "Houaiss": "Apoderar-se (de coisa alheia móvel); subtrair fraudulentamente (coisa alheia); roubar" ("Aurélio"); "Apossar-se de (coisa alheia); roubar" ("Houaiss").
O fato é que é preciso tomar cuidado com a definição de certos termos, sobretudo quando estão em jogo conceitos que os leitores/ouvintes não dominam. Devagar com o andor, meus caros. É isso.

inculta@uol.com.br


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