São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 2001

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LETRAS JURÍDICAS

Velloso põe o dedo na ferida

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O governo federal assumiu claramente a convicção de que a estabilidade jurídica, o respeito à tripartição de Poderes (com a cumplicidade omissiva do Legislativo), entre outros valores do direito, deve ser sacrificada para a satisfação de seus objetivos políticos ou econômicos. A intenção técnica de manter a estabilidade da moeda e de resguardar o país de futuras crises econômicas parece a melhor possível. Todavia, do ponto de vista do direito e da teoria geral do Estado, essa conduta vem aplicando os mesmos argumentos que, neste país, legitimaram a ditadura, em tempos recentes. Os fins estão justificando os meios.
O presidente Fernando Henrique foi eleito e reeleito pelo povo, a significar que não estamos em ditadura. Mas a torrente de medidas provisórias (sobre as quais o Legislativo silencia, desmerecendo o sufixo ativo de seu nome) mostra que estamos sob uma democracia formal, em que os valores do direito, defendidos no passado pelo próprio Fernando Henrique, são gravemente desconsiderados.
Um defensor do formalismo jurídico dirá que o artigo 62 da Constituição criou as medidas provisórias e o governo federal as edita tal como lhe é permitido pelo mesmo dispositivo, no qual inexiste previsão de limite objetivo quanto ao número de medidas editáveis ou de restrição material aos assuntos aceitáveis, exceto sua urgência e sua relevância.
Dirá mais o formalista: o presidente da República usa legitimamente o poder outorgado pela Constituição. Reforçará sua defesa com mais dois argumentos. O primeiro será baseado no parágrafo único do artigo 62, no qual está inserida a obrigação de imediato envio ao Congresso, pelo Executivo, de cada medida provisória editada. Se o Congresso não a aprecia para verificar se é, em tese, admissível, não é problema do presidente da República.
O segundo argumento dirá respeito ao Poder Judiciário. O STF (Supremo Tribunal Federal), o guardião da Carta Magna, já disse -com pouquíssimas exceções- que as reiterações de medidas provisórias são constitucionais. Logo, concluirá o mesmo defensor: os dois outros Poderes da República reforçam a legalidade das medidas. O argumento formal é sempre o mesmo. Foi usado no Peru de Fujimori há pouco. Pelos generais da Argentina e do Brasil há alguns anos. E por Adolf Hitler, na Alemanha nazista, há mais de meio século. Todos com o mesmo resultado ruim, como sabemos.
As medidas provisórias duram 30 dias. São reeditadas, em algumas vezes com o mesmo texto; em outras, ligeiramente diferentes. Nunca se sabe, com certeza absoluta, qual a lei vigente num certo mês. Nenhum ordenamento jurídico sobrevive sem uma certa estabilidade, impossível ao nos aproximarmos das 6.000 medidas. Falando a esta Folha, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Velloso, disse que o decreto-lei dos governos militares era melhor, submetido a limitações materiais. Com exemplar sinceridade, reconheceu que o Judiciário também é responsável pelos excessos. Mas pôs o dedo na ferida ao reclamar limites para as matérias compatíveis com a medida provisória e para a possibilidade de reedição. Teria sido ideal que o presidente da República não houvesse voltado as costas para seu passado democrático. Não o tendo feito, cabe ao Congresso emendar a Constituição para lhe impor o que voluntariamente não quer fazer.


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