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O ORIENTE É AQUI
Antigo reduto judaico, o Bom Retiro abriga hoje cerca de 2/3 da colônia oriental, que chega a 40 mil pessoas na cidade
Imigração coreana transforma bairro de SP
DÉBORA YURI
DA REVISTA
Os letreiros das lojas são incompreensíveis, assim como as conversas ouvidas em padarias ou
ruas, entre amigos ou crianças a
caminho da escola e seus pais.
Nos fundos da floricultura, um senhor dá aulas gratuitas de ideogramas chineses.
Numa esquina, adolescentes
cantam sucessos de astros pop como BoA e Kim Jong-Kuk. Na outra, a mercearia anuncia preço
bom para o soju, a bebida alcoólica campeã de preferência popular. E nada de Jude Law ou Rodrigo Santoro nas locadoras: o galã
do momento é Kwon Sang Woo.
São as evidências de que a troca
de guarda já foi feita: o Bom Retiro, o ex-bairro judaico de São
Paulo, é definitivamente coreano.
Enriquecidos, os judeus venderam ou alugaram suas lojas para
os novos moradores.
"O Bom Retiro virou a nossa Liberdade", diz Chul Un Kim, 61,
presidente da Associação dos Coreanos no Brasil. A diferença é
que o velho "Bonra" -como os
judeus chamavam seu reduto-
ainda não virou atração turística
como o bairro dos japoneses. "Os
estabelecimentos da região servem apenas a própria comunidade coreana, não os ocidentais. A
exceção é o vestuário", diz Kim.
Hoje, dois terços do comércio e
da indústria de roupas do Bom
Retiro estão em mãos coreanas. É
lá que se concentra o ganha-pão
da comunidade estimada em 40
mil pessoas, segundo o Consulado da Coréia. Bem menor do que
a japonesa, de cerca de 360 mil.
A imigração coreana no Brasil
começou oficialmente em 1963,
mas, antes dessa data, pequenos
grupos de ex-prisioneiros da
Guerra da Coréia já haviam aportado. Depois que o Japão perdeu a
Segunda Guerra e a Coréia reconquistou a liberdade perdida durante os 35 anos de ocupação japonesa, houve um grande fluxo
imigratório, principalmente entre
1963 e 1974. Pelos menos 90% da
colônia vive em São Paulo.
E os sinais da "ocupação" não
param de crescer. Segundo a Associação dos Coreanos no Brasil,
tem aumentado o número de
mercearias de produtos coreanos
e de igrejas no Bom Retiro (já são
mais de 20, católicas, protestantes
e budistas). E, numa cidade em
que comer fora é o programa predileto, o número de restaurantes
coreanos aumentou cerca de 30%
nos últimos cinco anos.
A principal rua do bairro é a
Prates, que abriga mercados de
alimentos típicos, restaurantes,
casa de chá e de câmbio, pré-escolas, karaokês, cabeleireiros, academias, salas para aulas de dança
típica e lojas de golfe, esporte que
é uma paixão nacional na Coréia.
Os quilos servem uma mistura de
comidas brasileira, chinesa, japonesa e coreana.
Muitos já não moram no Bom
Retiro, pois as famílias coreanas
de classe média-alta estão se deslocando para o Morumbi, Higienópolis e, principalmente, a Aclimação. Mas gostam mesmo é de
se divertir no bairro onde se sentem donos do pedaço. Os jovens
freqüentam karaokês e batem
ponto nas duas principais "lan
houses" da região. Ou se fartam,
quem diria, com um produto típico da Amazônia.
"A melhor coisa é tomar açaí,
virou a nossa comida", conta Nina Yoon, 16, ao lado das amigas
de escola Rebeca Kim, 16, e Diana
Lee, 15, todas nascidas no Brasil,
na sorveteria Pecado da Gula,
ponto de encontro depois das aulas. Para os mais crescidos, a
"happy hour" acontece no espetinho e boteco Cowboy.
Como a vida noturna do Bom
Retiro está longe de ser agitada,
eles também vão a lugares "de gaijin" (ocidental): danceterias na
Vila Olímpia, bares na Faria Lima
(Itaim) e na Brás Leme (Santana).
Mas as baladas mais concorridas
são as festas orientais que reúnem
japoneses e coreanos e praticamente não recebem "gaijins", como Rez, Onu e Sírio.
"Gais"
A mistura no lazer, porém, não
costuma predominar nas relações
pessoais. "Normalmente, o pessoal prefere coreano com coreano. Ficamos mais à vontade com
"coréia", estamos acostumados a
andar com eles. O lado ruim é que
existe muita gente que fala mal de
"japa" ou "gai" (gaijin) o tempo todo", diz Nina, cabelos pintados de
loiro escuro, a cor da moda para
elas, que prefere ficar a namorar e
acha "o português da novela "Como uma Onda'" (o ator Ricardo
Pereira) um homem bonito.
Os casamentos inter-raciais são
tabu. "O coreano é muito ligado à
família, precisa respeitar a tradição de casar com alguém da mesma raça. Hoje existem muitos
mestiços de brasileiros com japoneses no Brasil porque eles estão
muito avançados em termos de
imigração", observa o comerciante Ricardo Kyung Im, 37.
Se as relações com brasileiros
são um tanto distantes, com os japoneses ela é mais complicada,
fruto de décadas de rixas e ressentimentos. "Existe uma rivalidade
de muito tempo com os japoneses. Isso vem de ouvir os pais e os
avós, por causa da guerra. Os coreanos foram muito humilhados
pelos japoneses. Em balada oriental, rola pelo menos uma briga
por noite", diz André Kwon, 25,
na "lan house" Iron Net, que fica
cheia de "coréias" nos finais de
tarde e à noite.
A cidade também retribui os sinais de acolhida. Neste ano, a Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP pela
primeira vez oferecerá um curso
de coreano aberto aos interessados. Nesse troca-troca de influências, o melhor termômetro na hora de medir o grau de nacionalidade do imigrante ou descendente é a alimentação, diz Chul Un
Kim, presidente da Associação
dos Coreanos no Brasil. "Quando
você começa a comer arroz com
feijão e farofa toda semana, sabe
que já virou brasileiro."
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