São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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O ORIENTE É AQUI

Antigo reduto judaico, o Bom Retiro abriga hoje cerca de 2/3 da colônia oriental, que chega a 40 mil pessoas na cidade

Imigração coreana transforma bairro de SP

DÉBORA YURI
DA REVISTA

Os letreiros das lojas são incompreensíveis, assim como as conversas ouvidas em padarias ou ruas, entre amigos ou crianças a caminho da escola e seus pais. Nos fundos da floricultura, um senhor dá aulas gratuitas de ideogramas chineses.
Numa esquina, adolescentes cantam sucessos de astros pop como BoA e Kim Jong-Kuk. Na outra, a mercearia anuncia preço bom para o soju, a bebida alcoólica campeã de preferência popular. E nada de Jude Law ou Rodrigo Santoro nas locadoras: o galã do momento é Kwon Sang Woo.
São as evidências de que a troca de guarda já foi feita: o Bom Retiro, o ex-bairro judaico de São Paulo, é definitivamente coreano. Enriquecidos, os judeus venderam ou alugaram suas lojas para os novos moradores.
"O Bom Retiro virou a nossa Liberdade", diz Chul Un Kim, 61, presidente da Associação dos Coreanos no Brasil. A diferença é que o velho "Bonra" -como os judeus chamavam seu reduto- ainda não virou atração turística como o bairro dos japoneses. "Os estabelecimentos da região servem apenas a própria comunidade coreana, não os ocidentais. A exceção é o vestuário", diz Kim.
Hoje, dois terços do comércio e da indústria de roupas do Bom Retiro estão em mãos coreanas. É lá que se concentra o ganha-pão da comunidade estimada em 40 mil pessoas, segundo o Consulado da Coréia. Bem menor do que a japonesa, de cerca de 360 mil.
A imigração coreana no Brasil começou oficialmente em 1963, mas, antes dessa data, pequenos grupos de ex-prisioneiros da Guerra da Coréia já haviam aportado. Depois que o Japão perdeu a Segunda Guerra e a Coréia reconquistou a liberdade perdida durante os 35 anos de ocupação japonesa, houve um grande fluxo imigratório, principalmente entre 1963 e 1974. Pelos menos 90% da colônia vive em São Paulo.
E os sinais da "ocupação" não param de crescer. Segundo a Associação dos Coreanos no Brasil, tem aumentado o número de mercearias de produtos coreanos e de igrejas no Bom Retiro (já são mais de 20, católicas, protestantes e budistas). E, numa cidade em que comer fora é o programa predileto, o número de restaurantes coreanos aumentou cerca de 30% nos últimos cinco anos.
A principal rua do bairro é a Prates, que abriga mercados de alimentos típicos, restaurantes, casa de chá e de câmbio, pré-escolas, karaokês, cabeleireiros, academias, salas para aulas de dança típica e lojas de golfe, esporte que é uma paixão nacional na Coréia. Os quilos servem uma mistura de comidas brasileira, chinesa, japonesa e coreana.
Muitos já não moram no Bom Retiro, pois as famílias coreanas de classe média-alta estão se deslocando para o Morumbi, Higienópolis e, principalmente, a Aclimação. Mas gostam mesmo é de se divertir no bairro onde se sentem donos do pedaço. Os jovens freqüentam karaokês e batem ponto nas duas principais "lan houses" da região. Ou se fartam, quem diria, com um produto típico da Amazônia.
"A melhor coisa é tomar açaí, virou a nossa comida", conta Nina Yoon, 16, ao lado das amigas de escola Rebeca Kim, 16, e Diana Lee, 15, todas nascidas no Brasil, na sorveteria Pecado da Gula, ponto de encontro depois das aulas. Para os mais crescidos, a "happy hour" acontece no espetinho e boteco Cowboy.
Como a vida noturna do Bom Retiro está longe de ser agitada, eles também vão a lugares "de gaijin" (ocidental): danceterias na Vila Olímpia, bares na Faria Lima (Itaim) e na Brás Leme (Santana). Mas as baladas mais concorridas são as festas orientais que reúnem japoneses e coreanos e praticamente não recebem "gaijins", como Rez, Onu e Sírio.

"Gais"
A mistura no lazer, porém, não costuma predominar nas relações pessoais. "Normalmente, o pessoal prefere coreano com coreano. Ficamos mais à vontade com "coréia", estamos acostumados a andar com eles. O lado ruim é que existe muita gente que fala mal de "japa" ou "gai" (gaijin) o tempo todo", diz Nina, cabelos pintados de loiro escuro, a cor da moda para elas, que prefere ficar a namorar e acha "o português da novela "Como uma Onda'" (o ator Ricardo Pereira) um homem bonito.
Os casamentos inter-raciais são tabu. "O coreano é muito ligado à família, precisa respeitar a tradição de casar com alguém da mesma raça. Hoje existem muitos mestiços de brasileiros com japoneses no Brasil porque eles estão muito avançados em termos de imigração", observa o comerciante Ricardo Kyung Im, 37.
Se as relações com brasileiros são um tanto distantes, com os japoneses ela é mais complicada, fruto de décadas de rixas e ressentimentos. "Existe uma rivalidade de muito tempo com os japoneses. Isso vem de ouvir os pais e os avós, por causa da guerra. Os coreanos foram muito humilhados pelos japoneses. Em balada oriental, rola pelo menos uma briga por noite", diz André Kwon, 25, na "lan house" Iron Net, que fica cheia de "coréias" nos finais de tarde e à noite.
A cidade também retribui os sinais de acolhida. Neste ano, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP pela primeira vez oferecerá um curso de coreano aberto aos interessados. Nesse troca-troca de influências, o melhor termômetro na hora de medir o grau de nacionalidade do imigrante ou descendente é a alimentação, diz Chul Un Kim, presidente da Associação dos Coreanos no Brasil. "Quando você começa a comer arroz com feijão e farofa toda semana, sabe que já virou brasileiro."

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