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HABITAÇÃO
Espremidos entre a marginal Tietê e a linha da CPTM, habitantes de área na zona leste usam duto da Sabesp como passarela
Avenidas "aprisionam" morador de favela
LALO DE ALMEIDA
REPÓRTER FOTOGRÁFICO
GABRIELA ATHIAS
DA REPORTAGEM LOCAL
O barulho de aproximadamente
4.000 veículos, passando a pelo
menos 80 km/h, foi a "trilha sonora" que Vicente Ferreira da Silva,
32, foi obrigado a fazer de conta
que não ouvia para conseguir superar seu maior medo: atravessar
a pé as três pistas da marginal Tietê, na altura do Parque Novo
Mundo, zona leste de São Paulo.
A batalha entre o pavor e a necessidade de chegar a sua casa durou quase dez minutos e foi travada na última quinta-feira, quando
Silva voltava de mais uma etapa
do tratamento médico para restaurar a bacia -ele quebrou o osso em novembro, quando foi
atropelado na marginal.
Vicente é um dos milhares de cidadãos que vivem em favelas e
conjuntos habitacionais feitos pelo poder público que estão praticamente ilhados, cercados por
grandes avenidas e rodovias que
não dispõem de passarelas para
os pedestres.
No caso dos moradores dessa
região da marginal, cuja principal
referência é o viaduto General
Milton Tavares de Souza, a "passarela" é um duto de tubulação de
água da Sabesp. Ainda assim, o
cano serve apenas para cruzar o
rio, não as pistas da marginal.
Todos os dias passam pela marginal 700 mil veículos, informam
as estatísticas da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego).
Isso dá uma média de 29 mil veículos por hora; cerca de 4.800 a
cada dez minutos. Como o tráfego
é mais intenso durante o dia, a
aritmética acaba sendo driblada
pelos horários de pico.
Obstáculo
Esse mundo de carros e de motoristas é o maior obstáculo para
os moradores de três favelas e do
projeto Cingapura da Chácara Bela Vista, espalhados embaixo e em
volta do viaduto General Milton
Tavares de Souza. Só no Cingapura e nos 376 barracos em volta dos
prédios vivem 12 mil pessoas.
Na favela do Pé Sujo -como é
chamada a primeira parte da favela Tiquatira, uma das maiores e
mais antigas da cidade- existem
aproximadamente mil barracos e
cerca de 5.000 pessoas, pela estimativa dos moradores.
As famílias que moram na Pé
Sujo estão "ilhadas" pela marginal e pela linha do trem da CPTM
(Companhia Paulista de Trans
Metropolitanos), na altura da avenida São Miguel. Quem mora no
Cingapura tem o agravante de
também estar ilhado pela rodovia
Fernão Dias.
"De cada dez atropelados, um
escapa vivo", diz o mecânico Valdomiro Silva Oliveira, 51, que há
12 anos conserta caminhões na
calçada da pista expressa no sentido centro, que é a recordista de
acidentes nesse trecho.
"Dá tanto nervoso que, quando
a gente vê grávida tentando atravessar, fecha os olhos ou vira a cara", afirma o mecânico.
O poder público também tem
fechado os olhos para o problema: até hoje não existe uma única
passarela na marginal Tietê.
"Há um ano mandamos uma
carta para a Secretaria Municipal
dos Transportes pedindo uma
passarela. Eles nem responderam", diz Célio Márcio Filgueiras
Galvão, gerente da Sabesp, responsável pela área onde fica o duto usado como passarela.
Embora a marginal Tietê seja
exclusiva para veículos, ela é a recordista de atropelamentos na cidade. O dado mais novo da CET,
de 1998, informa que naquele ano
171 pessoas foram atingidas por
carros ou caminhões nessa via.
O segundo e o terceiro lugares
do ranking são ocupados por avenidas que cruzam áreas residenciais, com faixas de pedestres
(avenidas Interlagos e M'Boi-Mirim, ambas na zona sul).
A população atravessa a marginal principalmente para fazer
compras e ir trabalhar. Já a linha
do trem é cruzada por crianças
das favelas Pé Sujo e Tiquatira que
frequentam escolas próximas.
O discurso oficial é que essas
pessoas deveriam atravessar a
marginal pelo viaduto, apesar de
não haver nele uma calçada para
pedestres. "Esse pessoal não sabe
o que está falando", afirma Francisco de Amorim Filho, 67, líder
comunitário do Cingapura Bela
Vista.
O viaduto alonga a travessia em
três ou quatro quilômetros, dependendo do ponto de chegada.
"Esse lugar aí (o viaduto) foi tomado pelos marginais. Quero ver
alguém passar por aí a pé", diz
Amorim Filho, que durante 12
anos foi presidente da comunidade da favela da Vila Formosa.
"Sabe por que eu vendi tudo e
vim pra cá?", pergunta. "Meu filho foi assassinado e eu perdi o
gosto pela vida."
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