São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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HABITAÇÃO

Espremidos entre a marginal Tietê e a linha da CPTM, habitantes de área na zona leste usam duto da Sabesp como passarela

Avenidas "aprisionam" morador de favela

LALO DE ALMEIDA
REPÓRTER FOTOGRÁFICO

GABRIELA ATHIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

O barulho de aproximadamente 4.000 veículos, passando a pelo menos 80 km/h, foi a "trilha sonora" que Vicente Ferreira da Silva, 32, foi obrigado a fazer de conta que não ouvia para conseguir superar seu maior medo: atravessar a pé as três pistas da marginal Tietê, na altura do Parque Novo Mundo, zona leste de São Paulo.
A batalha entre o pavor e a necessidade de chegar a sua casa durou quase dez minutos e foi travada na última quinta-feira, quando Silva voltava de mais uma etapa do tratamento médico para restaurar a bacia -ele quebrou o osso em novembro, quando foi atropelado na marginal.
Vicente é um dos milhares de cidadãos que vivem em favelas e conjuntos habitacionais feitos pelo poder público que estão praticamente ilhados, cercados por grandes avenidas e rodovias que não dispõem de passarelas para os pedestres.
No caso dos moradores dessa região da marginal, cuja principal referência é o viaduto General Milton Tavares de Souza, a "passarela" é um duto de tubulação de água da Sabesp. Ainda assim, o cano serve apenas para cruzar o rio, não as pistas da marginal.
Todos os dias passam pela marginal 700 mil veículos, informam as estatísticas da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). Isso dá uma média de 29 mil veículos por hora; cerca de 4.800 a cada dez minutos. Como o tráfego é mais intenso durante o dia, a aritmética acaba sendo driblada pelos horários de pico.

Obstáculo
Esse mundo de carros e de motoristas é o maior obstáculo para os moradores de três favelas e do projeto Cingapura da Chácara Bela Vista, espalhados embaixo e em volta do viaduto General Milton Tavares de Souza. Só no Cingapura e nos 376 barracos em volta dos prédios vivem 12 mil pessoas.
Na favela do Pé Sujo -como é chamada a primeira parte da favela Tiquatira, uma das maiores e mais antigas da cidade- existem aproximadamente mil barracos e cerca de 5.000 pessoas, pela estimativa dos moradores.
As famílias que moram na Pé Sujo estão "ilhadas" pela marginal e pela linha do trem da CPTM (Companhia Paulista de Trans Metropolitanos), na altura da avenida São Miguel. Quem mora no Cingapura tem o agravante de também estar ilhado pela rodovia Fernão Dias.
"De cada dez atropelados, um escapa vivo", diz o mecânico Valdomiro Silva Oliveira, 51, que há 12 anos conserta caminhões na calçada da pista expressa no sentido centro, que é a recordista de acidentes nesse trecho.
"Dá tanto nervoso que, quando a gente vê grávida tentando atravessar, fecha os olhos ou vira a cara", afirma o mecânico.
O poder público também tem fechado os olhos para o problema: até hoje não existe uma única passarela na marginal Tietê.
"Há um ano mandamos uma carta para a Secretaria Municipal dos Transportes pedindo uma passarela. Eles nem responderam", diz Célio Márcio Filgueiras Galvão, gerente da Sabesp, responsável pela área onde fica o duto usado como passarela.
Embora a marginal Tietê seja exclusiva para veículos, ela é a recordista de atropelamentos na cidade. O dado mais novo da CET, de 1998, informa que naquele ano 171 pessoas foram atingidas por carros ou caminhões nessa via.
O segundo e o terceiro lugares do ranking são ocupados por avenidas que cruzam áreas residenciais, com faixas de pedestres (avenidas Interlagos e M'Boi-Mirim, ambas na zona sul).
A população atravessa a marginal principalmente para fazer compras e ir trabalhar. Já a linha do trem é cruzada por crianças das favelas Pé Sujo e Tiquatira que frequentam escolas próximas.
O discurso oficial é que essas pessoas deveriam atravessar a marginal pelo viaduto, apesar de não haver nele uma calçada para pedestres. "Esse pessoal não sabe o que está falando", afirma Francisco de Amorim Filho, 67, líder comunitário do Cingapura Bela Vista.
O viaduto alonga a travessia em três ou quatro quilômetros, dependendo do ponto de chegada. "Esse lugar aí (o viaduto) foi tomado pelos marginais. Quero ver alguém passar por aí a pé", diz Amorim Filho, que durante 12 anos foi presidente da comunidade da favela da Vila Formosa.
"Sabe por que eu vendi tudo e vim pra cá?", pergunta. "Meu filho foi assassinado e eu perdi o gosto pela vida."


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