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JUSTIÇA
Baleado em uma briga, Wilson José foi acusado injustamente de participar de assalto a banco em Campinas (SP)
Erro leva inocente a ficar três anos preso
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A CAMPINAS
Quando o segurança Idalício
Ramos da Silva Júnior sacou o seu
revólver calibre 38, disparando
dois tiros e atingindo um dos ladrões que assaltavam uma agência da Caixa Econômica Federal
em Campinas (SP), os bandidos,
mais de cinco, fugiram.
Dois foram presos ao sair do
banco. Os outros, inclusive o baleado, escaparam. Menos de uma
hora depois, um rapaz de 19 anos,
Wilson José da Silva Jesus, foi preso quando era levado num Passat
(modelo antigo) para um pronto-socorro. Sangrava, em virtude de
tiros recebidos. Os policiais o carregaram para o Hospital Municipal Dr. Mário Gatti.
No hospital, o segurança Idalício Júnior, então com 27 anos, reconheceu Wilson Jesus como o
assaltante contra o qual reagira a
bala, saindo de trás de uma pilastra e atirando com precisão.
Ao ver as roupas ensanguentadas do rapaz, atestou: eram as que
Wilson vestia ao atacar o banco.
Outro segurança, Valdeíde dos
Reis, confirmou: tratava-se, sem
resquício de dúvida, verdade verdadeira, do assaltante que o imobilizou com uma arma. Era 19 de
junho de 1996.
Wilson contou uma história inverossímil, antes de ir para cadeia:
no momento em que ocorria o assalto, um rapaz conhecido como
Dentinho, que jurara assassiná-lo
e já o havia baleado uma vez, investiu de novo, alvejando-o, no
Jardim São Marcos, bairro da periferia de Campinas. Quanto aos
vigilantes, estavam enganados.
Como acreditar?
Wilson era pobre, analfabeto,
desempregado. E inocente, como
viria a considerar não apenas o
juiz federal Friedmann Anderson
Wendpap, mas a procuradora da
República Elisandra de Oliveira
Olímpio. Encarregada da acusação, ela pediu a absolvição.
A saga de Wilson está contada
num livro inédito do advogado
Marcos Roberto Boni, ""A História
Real do Homem que Foi Preso
Duas Vezes por Engano".
O outro caso ao qual o título se
refere foi semelhante: em 9 de novembro de 1995, Wilson foi encontrado ensanguentado, após
uma bala ferir-lhe a mandíbula.
Minutos antes, no mesmo local,
na área de favela do Jardim São
Marcos, policiais haviam trocado
tiros com ladrões que fugiam
num carro roubado, depois de assaltar três pessoas em dois caixas
eletrônicos e sequestrá-las por alguns minutos.
Socorrido no hospital da Unicamp, Wilson disse que fora baleado por um certo Dentinho. Foi
detido na hora, indiciado como
assaltante e sequestrador, iniciando sua primeira temporada, de
cinco meses, na prisão, para ser
condenado em primeira instância
e, depois, absolvido pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo.
Wilson morreu menos de três
anos após a absolvição no processo da tentativa de assalto a banco.
E nove meses depois da libertação
decidida pelo TJ ao inocentá-lo no
processo dos caixas eletrônicos.
Passou, ao todo, três anos e quatro meses numa cadeia de Campinas e num presídio de Bauru (SP).
Foi assassinado no dia 21 de fevereiro de 2000 por um atirador
que pedalava uma bicicleta. A bala rasgou-lhe a nuca.
Deixou um depoimento numa
fita de vídeo gravada pelo advogado. E as memórias que ajudaram
a compor um livro segundo o
qual, por mais que pareçam culpadas, algumas pessoas às vezes
são inocentes.
Azarado
Marcos Boni e Wilson Jesus se
cruzaram por acaso. O advogado,
um ex-policial que trabalhou como investigador dos 18 aos 25
anos de idade, foi procurado por
amigos dos dois ladrões presos no
assalto malsucedido à CEF. Como
lera o noticiário, Boni, 32, conta
ter indagado: ""Mas não são três
presos?"
Eram, mas ouviu que a busca
dos seus serviços se restringia a
dois, que de fato estavam envolvidos com a ação. Sobre o outro detido, ninguém sabia de quem se
tratava, diz Boni.
No primeiro interrogatório em
juízo dos presos e das testemunhas, constatou que Wilson não
tinha advogado. Como a lei obriga a presença de um, Boni prontificou-se a funcionar como tal.
Sem receber um tostão, tornou-se
defensor de Wilson. ""Conheci a
pessoa mais azarada que já existiu", afirma.
Wilson Jesus contou sua história: aos sete anos de idade, foi
atropelado, bateu com a cabeça
no asfalto, passou meses convalescendo e nunca mais voltou à
escola, daí só saber assinar o nome, sem ler ou escrever.
Por volta de agosto de 1995, estava fumando uma pedra de crack
(droga originária da coca, planta a
partir da qual se produz a cocaína) em companhia de um amigo
conhecido como Maluco.
Estavam no Jardim São Marcos.
O amigo, sob efeito do crack, teria
parado um rapaz que vinha numa
bicicleta, dado-lhe um tapa e roubado o veículo. O rapaz era Dentinho, cuja identidade nunca viria a
ser esclarecida pela polícia. Dentinho jurou vingança, contou Wilson no vídeo de 1999.
Três meses depois, Wilson foi
preso sob acusação de participar
de um crime com o qual assegurou nada ter a ver. Um casal de
médicos e um pintor de letreiros
foram rendidos por três homens.
As vítimas foram obrigadas a tirar dinheiro de dois caixas eletrônicos. Os ladrões levaram R$ 460,
relógios e jóias, além do Fiat Prêmio do casal, que, com o pintor,
foi deixado na rodovia D. Pedro I.
Um pouco adiante, um cabo e
um soldado da PM passaram a
perseguir dois homens que fugiam no carro. No Jardim Campineiro, colado ao Jardim São Marcos, a troca de tiros resultou no ferimento, na perna direita, do autônomo Joel dos Santos, que saía
de um bar. Logo, os dois fugitivos
abandonaram o automóvel e escaparam.
Menos de uma hora depois,
Wilson Jesus e Adriano Oliveira,
apelidado de Chapisco, deram entrada baleados no hospital da
Unicamp. Cada um foi encontrado sangrando em locais diferentes
do Jardim São Marcos.
Wilson contou que estava numa
passarela quando Dentinho apareceu, atirando em sua cabeça. A
bala atingiu a mandíbula. Wilson
disse ter fingido estar morto. Dentinho teria ido embora. Wilson
afirmou ter corrido, até não
aguentar mais e ser socorrido por
um motorista. Chapisco teria
mesmo participado do crime,
conforme diversos indícios e decisão judicial posterior.
O casal de médicos disse não
poder reconhecer Wilson porque
seus rostos ficaram virados para o
chão do carro. Os PMs afirmaram
não ter condições de confirmar se
Wilson era um dos dois fugitivos
no automóvel.
O hospital informou não ter encontrado a bala que penetrou
Wilson e permitiria saber se saíra
das armas dos PMs. O Ministério
Público, por falta de provas, pediu
a libertação do suspeito, que saiu
da cadeia em abril de 1996.
O pintor de paredes, a terceira
vítima do assalto, num terceiro
depoimento, reconheceu Wilson
como um dos ladrões. Antes, dissera que não pudera ver os assaltantes, ""porque estava com a cabeça abaixada".
Com esse testemunho, Wilson
foi condenado em novembro de
1996, em primeira instância, pela
acusação de roubo qualificado e
sequestro, com pena de seis anos
e quatro meses de reclusão.
No processo, Wilson reconheceu já ter cometido pequenos furtos, mas negou participação no
assalto às três pessoas. ""Ele não
era um santo", diz Marcos Boni,
que não o representou neste caso.
Wilson Jesus recorreu ao Tribunal de Justiça. No dia 28 de abril
de 1999, a 2ª Câmara Criminal,
por unanimidade, o absolveu. O
relator, Prado de Toledo, considerou ""muito frágil esse repentino
reconhecimento", referindo-se ao
autônomo que apontou Wilson
no terceiro depoimento.
Absolvição
A leitura do processo dos caixas
eletrônicos, pelas coincidências
do tiroteio e da internação de Wilson Jesus, permite dúvidas sobre
sua não-participação no crime.
No caso do assalto a banco, é evidente a inocência.
A prisão de Wilson no segundo
crime foi fundamentada no reconhecimento feito por dois vigilantes. Um apontou inicialmente o
homem baleado como ""de cor escura". Wilson tinha pele e cabelos
claros. Outro vigilante revelou
que, no dia do crime, estava sem
os óculos que costuma usar.
O hospital Mário Gatti emitiu
laudo apontando que duas balas
penetraram a coxa esquerda e
uma, a nádega esquerda. A arma
do vigilante Idalício Júnior disparara duas vezes. Como não existe
o milagre da multiplicação das
balas, não fora o vigilante quem
atingira o rapaz.
Mais: a polícia perdeu os projéteis que atingiram Wilson. ""Descobri que eram de pistola, e não
do revólver 38 que o vigilante
usou", diz Marcos Boni.
A namorada de Wilson Jesus
confirmou que ele estava na casa
dela, no Jardim São Marcos,
quando Dentinho chegou. Uma
vizinha disse que o rapaz pulou
sobre o muro de seu quintal na fuga, sujando-o de sangue. Testemunhas reforçaram o relato.
Novas investigações policiais
apontaram para um bandido conhecido como Alemãozinho o papel imputado a Wilson.
A procuradora da República
Elisandra Olímpio considerou a
versão de Wilson ""à primeira vista inverossímil", mas defendeu a
absolvição devido ao volume de
provas que sustentaram a história
por ele narrada.
O juiz Friedmann Anderson
Wendpap escreveu na sentença:
""A absolvição do réu é imperiosa.
Apesar do reconhecimento feito
por dois dos seguranças da agência bancária assaltada, o álibi do
réu é fortíssimo a ponto de poder-se com segurança dizer que ele
não participou do roubo".
""Entendo que a firmeza dos seguranças no reconhecimento do
réu Wilson demonstra a fragilidade deste tipo de prova, que ora
pode conduzir a uma situação de
erro atroz como este em exame e
ora pode levar à absolvição de culpados, em razão do medo que as
vítimas de assaltos a banco costumam ter nessa hora."
Pelo crime dos caixas eletrônicos, Wilson foi preso em novembro de 1995 e libertado em abril de
1996. De junho de 1996 a janeiro
de 1997, ficou preso pelo assalto a
banco, mas não saiu da prisão, na
qual continuou em virtude da
condenação no processo dos caixas, até maio de 1999. O "homem
mais azarado do mundo" foi assassinado em fevereiro de 2000,
até hoje não se sabe por quem.
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