São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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JUSTIÇA

Baleado em uma briga, Wilson José foi acusado injustamente de participar de assalto a banco em Campinas (SP)

Erro leva inocente a ficar três anos preso

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A CAMPINAS

Quando o segurança Idalício Ramos da Silva Júnior sacou o seu revólver calibre 38, disparando dois tiros e atingindo um dos ladrões que assaltavam uma agência da Caixa Econômica Federal em Campinas (SP), os bandidos, mais de cinco, fugiram.
Dois foram presos ao sair do banco. Os outros, inclusive o baleado, escaparam. Menos de uma hora depois, um rapaz de 19 anos, Wilson José da Silva Jesus, foi preso quando era levado num Passat (modelo antigo) para um pronto-socorro. Sangrava, em virtude de tiros recebidos. Os policiais o carregaram para o Hospital Municipal Dr. Mário Gatti.
No hospital, o segurança Idalício Júnior, então com 27 anos, reconheceu Wilson Jesus como o assaltante contra o qual reagira a bala, saindo de trás de uma pilastra e atirando com precisão.
Ao ver as roupas ensanguentadas do rapaz, atestou: eram as que Wilson vestia ao atacar o banco. Outro segurança, Valdeíde dos Reis, confirmou: tratava-se, sem resquício de dúvida, verdade verdadeira, do assaltante que o imobilizou com uma arma. Era 19 de junho de 1996.
Wilson contou uma história inverossímil, antes de ir para cadeia: no momento em que ocorria o assalto, um rapaz conhecido como Dentinho, que jurara assassiná-lo e já o havia baleado uma vez, investiu de novo, alvejando-o, no Jardim São Marcos, bairro da periferia de Campinas. Quanto aos vigilantes, estavam enganados. Como acreditar?
Wilson era pobre, analfabeto, desempregado. E inocente, como viria a considerar não apenas o juiz federal Friedmann Anderson Wendpap, mas a procuradora da República Elisandra de Oliveira Olímpio. Encarregada da acusação, ela pediu a absolvição.
A saga de Wilson está contada num livro inédito do advogado Marcos Roberto Boni, ""A História Real do Homem que Foi Preso Duas Vezes por Engano".
O outro caso ao qual o título se refere foi semelhante: em 9 de novembro de 1995, Wilson foi encontrado ensanguentado, após uma bala ferir-lhe a mandíbula.
Minutos antes, no mesmo local, na área de favela do Jardim São Marcos, policiais haviam trocado tiros com ladrões que fugiam num carro roubado, depois de assaltar três pessoas em dois caixas eletrônicos e sequestrá-las por alguns minutos.
Socorrido no hospital da Unicamp, Wilson disse que fora baleado por um certo Dentinho. Foi detido na hora, indiciado como assaltante e sequestrador, iniciando sua primeira temporada, de cinco meses, na prisão, para ser condenado em primeira instância e, depois, absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Wilson morreu menos de três anos após a absolvição no processo da tentativa de assalto a banco. E nove meses depois da libertação decidida pelo TJ ao inocentá-lo no processo dos caixas eletrônicos. Passou, ao todo, três anos e quatro meses numa cadeia de Campinas e num presídio de Bauru (SP).
Foi assassinado no dia 21 de fevereiro de 2000 por um atirador que pedalava uma bicicleta. A bala rasgou-lhe a nuca.
Deixou um depoimento numa fita de vídeo gravada pelo advogado. E as memórias que ajudaram a compor um livro segundo o qual, por mais que pareçam culpadas, algumas pessoas às vezes são inocentes.

Azarado
Marcos Boni e Wilson Jesus se cruzaram por acaso. O advogado, um ex-policial que trabalhou como investigador dos 18 aos 25 anos de idade, foi procurado por amigos dos dois ladrões presos no assalto malsucedido à CEF. Como lera o noticiário, Boni, 32, conta ter indagado: ""Mas não são três presos?"
Eram, mas ouviu que a busca dos seus serviços se restringia a dois, que de fato estavam envolvidos com a ação. Sobre o outro detido, ninguém sabia de quem se tratava, diz Boni.
No primeiro interrogatório em juízo dos presos e das testemunhas, constatou que Wilson não tinha advogado. Como a lei obriga a presença de um, Boni prontificou-se a funcionar como tal. Sem receber um tostão, tornou-se defensor de Wilson. ""Conheci a pessoa mais azarada que já existiu", afirma.
Wilson Jesus contou sua história: aos sete anos de idade, foi atropelado, bateu com a cabeça no asfalto, passou meses convalescendo e nunca mais voltou à escola, daí só saber assinar o nome, sem ler ou escrever.
Por volta de agosto de 1995, estava fumando uma pedra de crack (droga originária da coca, planta a partir da qual se produz a cocaína) em companhia de um amigo conhecido como Maluco.
Estavam no Jardim São Marcos. O amigo, sob efeito do crack, teria parado um rapaz que vinha numa bicicleta, dado-lhe um tapa e roubado o veículo. O rapaz era Dentinho, cuja identidade nunca viria a ser esclarecida pela polícia. Dentinho jurou vingança, contou Wilson no vídeo de 1999.
Três meses depois, Wilson foi preso sob acusação de participar de um crime com o qual assegurou nada ter a ver. Um casal de médicos e um pintor de letreiros foram rendidos por três homens.
As vítimas foram obrigadas a tirar dinheiro de dois caixas eletrônicos. Os ladrões levaram R$ 460, relógios e jóias, além do Fiat Prêmio do casal, que, com o pintor, foi deixado na rodovia D. Pedro I.
Um pouco adiante, um cabo e um soldado da PM passaram a perseguir dois homens que fugiam no carro. No Jardim Campineiro, colado ao Jardim São Marcos, a troca de tiros resultou no ferimento, na perna direita, do autônomo Joel dos Santos, que saía de um bar. Logo, os dois fugitivos abandonaram o automóvel e escaparam.
Menos de uma hora depois, Wilson Jesus e Adriano Oliveira, apelidado de Chapisco, deram entrada baleados no hospital da Unicamp. Cada um foi encontrado sangrando em locais diferentes do Jardim São Marcos.
Wilson contou que estava numa passarela quando Dentinho apareceu, atirando em sua cabeça. A bala atingiu a mandíbula. Wilson disse ter fingido estar morto. Dentinho teria ido embora. Wilson afirmou ter corrido, até não aguentar mais e ser socorrido por um motorista. Chapisco teria mesmo participado do crime, conforme diversos indícios e decisão judicial posterior.
O casal de médicos disse não poder reconhecer Wilson porque seus rostos ficaram virados para o chão do carro. Os PMs afirmaram não ter condições de confirmar se Wilson era um dos dois fugitivos no automóvel.
O hospital informou não ter encontrado a bala que penetrou Wilson e permitiria saber se saíra das armas dos PMs. O Ministério Público, por falta de provas, pediu a libertação do suspeito, que saiu da cadeia em abril de 1996.
O pintor de paredes, a terceira vítima do assalto, num terceiro depoimento, reconheceu Wilson como um dos ladrões. Antes, dissera que não pudera ver os assaltantes, ""porque estava com a cabeça abaixada".
Com esse testemunho, Wilson foi condenado em novembro de 1996, em primeira instância, pela acusação de roubo qualificado e sequestro, com pena de seis anos e quatro meses de reclusão.
No processo, Wilson reconheceu já ter cometido pequenos furtos, mas negou participação no assalto às três pessoas. ""Ele não era um santo", diz Marcos Boni, que não o representou neste caso.
Wilson Jesus recorreu ao Tribunal de Justiça. No dia 28 de abril de 1999, a 2ª Câmara Criminal, por unanimidade, o absolveu. O relator, Prado de Toledo, considerou ""muito frágil esse repentino reconhecimento", referindo-se ao autônomo que apontou Wilson no terceiro depoimento.

Absolvição
A leitura do processo dos caixas eletrônicos, pelas coincidências do tiroteio e da internação de Wilson Jesus, permite dúvidas sobre sua não-participação no crime. No caso do assalto a banco, é evidente a inocência.
A prisão de Wilson no segundo crime foi fundamentada no reconhecimento feito por dois vigilantes. Um apontou inicialmente o homem baleado como ""de cor escura". Wilson tinha pele e cabelos claros. Outro vigilante revelou que, no dia do crime, estava sem os óculos que costuma usar.
O hospital Mário Gatti emitiu laudo apontando que duas balas penetraram a coxa esquerda e uma, a nádega esquerda. A arma do vigilante Idalício Júnior disparara duas vezes. Como não existe o milagre da multiplicação das balas, não fora o vigilante quem atingira o rapaz.
Mais: a polícia perdeu os projéteis que atingiram Wilson. ""Descobri que eram de pistola, e não do revólver 38 que o vigilante usou", diz Marcos Boni.
A namorada de Wilson Jesus confirmou que ele estava na casa dela, no Jardim São Marcos, quando Dentinho chegou. Uma vizinha disse que o rapaz pulou sobre o muro de seu quintal na fuga, sujando-o de sangue. Testemunhas reforçaram o relato.
Novas investigações policiais apontaram para um bandido conhecido como Alemãozinho o papel imputado a Wilson.
A procuradora da República Elisandra Olímpio considerou a versão de Wilson ""à primeira vista inverossímil", mas defendeu a absolvição devido ao volume de provas que sustentaram a história por ele narrada.
O juiz Friedmann Anderson Wendpap escreveu na sentença: ""A absolvição do réu é imperiosa. Apesar do reconhecimento feito por dois dos seguranças da agência bancária assaltada, o álibi do réu é fortíssimo a ponto de poder-se com segurança dizer que ele não participou do roubo".
""Entendo que a firmeza dos seguranças no reconhecimento do réu Wilson demonstra a fragilidade deste tipo de prova, que ora pode conduzir a uma situação de erro atroz como este em exame e ora pode levar à absolvição de culpados, em razão do medo que as vítimas de assaltos a banco costumam ter nessa hora."
Pelo crime dos caixas eletrônicos, Wilson foi preso em novembro de 1995 e libertado em abril de 1996. De junho de 1996 a janeiro de 1997, ficou preso pelo assalto a banco, mas não saiu da prisão, na qual continuou em virtude da condenação no processo dos caixas, até maio de 1999. O "homem mais azarado do mundo" foi assassinado em fevereiro de 2000, até hoje não se sabe por quem.


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