São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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Milú Villela dedica todo o seu tempo para incentivar o trabalho voluntário no país

Herdeira de banco só trabalha de graça

RICARDO KOTSCHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Sete da manhã de segunda-feira, 7 de maio. Sozinha à mesa, na copa da sua bem arborizada e aconchegante casa no Morumbi, sempre com pressa, ela toma o café da manhã: um copo de leite de soja com sabor baunilha e umas bolachinhas de água e sal. Pronto. Com duas pastas, cinco jornais e uma sacola a tiracolo, Milú Villela, 54, está preparada para iniciar mais uma louca jornada de voluntária em tempo integral, que não tem hora para acabar. Vamos acompanhá-la.
Herdeira, junto com dois sobrinhos, de 36% das ações do Itaú, segundo maior banco privado do país (lucro de R$ 1,8 bilhão no ano passado), Maria de Lourdes Egydio Villela só trabalha de graça.
Dá algumas orientações aos três empregados da casa e desce rapidamente as escadas até a garagem. Jurandir dos Santos, há 15 anos seu fiel motorista, já a aguarda perfilado diante do Volvo blindado que a vai levar ao primeiro compromisso do dia. Destino: Associação Comunitária Despertar, no Jardim Miriam, um dos mais violentos bairros da zona sul de São Paulo, quase na divisa com a cidade de Diadema.
No caminho, a presidente do Comitê Nacional para o Ano Internacional do Voluntário, instituído pela ONU em 123 países, vai lembrando como trocou a pacata vida de dona-de-casa, preocupada apenas com a educação dos filhos, pela atividade frenética dos últimos anos.
A inspiração, conta, veio da sua avó Umbelina, que trabalhou muitos anos como voluntária numa casa de mães solteiras, na Casa Verde. Separada do segundo marido, quando viu os dois filhos crescidos (hoje eles vivem em Londres), Milú também resolveu "fazer alguma coisa pelos outros" - e não parou mais.
Ela não fala sobre os filhos, a família, a vida privada. Seu namorado, Emannuel Prado Lopes, é o presidente do Viva Centro, uma entidade também formada por voluntários.
Milú começou nesta nova vida em 1991, ajudando uma creche que fica entre duas favelas, no Real Parque, o enclave miserável do Morumbi, onde freiras colombianas cuidavam de 100 crianças.
Era muito pouco para os sonhos solidários de Milú. "Entrei de sola", recorda, entre uma e outra ligação no telefone celular para a secretária Ana Maria Pereira, que há três décadas trabalha com a família Villela.
Logo fez planos para erguer um galpão de 500 metros quadrados onde pretendia instalar cursos profissionalizantes, uma das obsessões de seu pai, Eudoro Libanio Villela, maior acionista do Itaú, falecido no mês passado. Mas as freiras acharam o projeto ousado demais.

MAM e periferia
Os planos de Milú foram se concretizar alguns anos depois, em 1995, na Associação Comunitária Despertar, que cuida da formação profissional de 150 jovens entre 14 e 17 anos por semestre e, à noite, oferece cursos de alfabetização para 150 adultos.
Na mesma época, ela assumiria a presidência do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, onde promoveu uma verdadeira revolução cultural, que elevou o número de visitantes de 9.800, em 1994, para 301 mil no ano passado.
No início do trabalho na Despertar, houve resistência de alguns líderes comunitários do Jardim Miriam, que não viam com bons olhos a presença daquela mulher bem vestida, acompanhada de assessores e seguranças.
Agora, quando Milú chega, pouco depois das 8h, já não causa surpresa. Vai entrando de sala em sala, conversa com professores e alunos, sente-se em casa.
Faz festa quando se encontra com a arquiteta Amélia Bratke, amiga desde os tempos de curso primário, responsável pelas obras de ampliação da Despertar.
Com o tempo, as duas ganharam a confiança da comunidade. Além dos cursos profissionalizantes (eletricidade, jardinagem, corte e costura, informática), de alfabetização e de teatro, a associação comunitária mantém um coral e oferece atendimento médico, odontológico e psicológico a 7.000 pessoas por mês.
Um empresário amigo de Milú ficou tão emocionado com a apresentação do coral no enterro de Eudoro que doou no ato dois veículos à entidade.
O projeto já tem um filhote, a Despertar 2, uma creche para 165 crianças de dois meses a cinco anos, que foi construída em parceria com a prefeitura no Parque Dorotéia, em Pedreira, também na região sul da cidade.
"As pessoas chegam aqui olhando para o chão. Quando saem, conversam com qualquer um olho no olho", repara Milú, já preocupada com o horário do vôo para o Rio de Janeiro, marcado para 10h28.

Um pulo ao Rio
De pé, encostada no carrinho de bagagem, ela faz uma última revisão no texto da palestra que dará no auditório do BNDES, no Rio, programada para o meio-dia.
A palestra faz parte do ciclo de debates "Compromisso com um Brasil Melhor", que a levará a seis capitais para divulgar, junto com o psiquiatra e escritor Roberto Shinyashiki, as atividades do Ano Internacional do Voluntário.
Única passageira da primeira classe, aceita apenas um copo d'água, e dá início ao ritual de todos os dias: a leitura atenta dos principais jornais de São Paulo e do Rio.
Recorta notícias sobre os mais variados temas, que vai guardando na pasta para depois repassar aos integrantes do seu "staff" nas diferentes entidades que dirige.
"Quanto mais eu faço, mais animação eu tenho", diz Milú, hoje uma pessoa jurídica que não tem encontrado tempo para cuidar da pessoa física. Como recebe convites para jantares quase todos os dias, tem faltado às sessões de ginástica e reflexologia que faz em casa (mas não deixa de fazer exercícios de meditação por sugestão de seu primo Frei Betto).
"Às vezes, sou obrigada a ir a dois, até três jantares na mesma noite para não perder a chance de conversar com gente que tem condições de dar alguma ajuda para as minhas entidades". Chamada de mecenas, é a maior pedinte da praça.
Se não tem algum almoço de trabalho -quer dizer, com algum possível patrocinador-, contenta-se com uma sopa que leva de casa e esquenta no MAM.
Integrante do conselho de 16 instituições, entre eles o da Itaúsa (holding do grupo Itaú, do qual é vice-presidente), leva sempre no carro, além da sopa, algumas roupas para trocar de traje conforme os compromissos ao longo do dia.
Ao aterrissar no Santos Dumont, no Rio, vai direto ao toalete, onde troca de blusa e tira as meias para enfrentar o calor, sem esquecer de retocar a maquiagem.
"Para cada real aplicado no voluntariado, há um retorno de R$ 12 para a sociedade. Para cada real do nosso imposto aplicado pelo governo na área social, chegam apenas R$ 0,20 no fim da linha", contabiliza, no trajeto até o BNDES, no centro carioca.
Discretamente elegante em seu tailleur preto e branco de lã mesclada, pula do carro irritada para saber o que está ocorrendo quando o porteiro demora a liberar a entrada da garagem do banco.
Roberto Shinyashiki já está à sua espera, mas o auditório encontra-se semi-deserto na hora marcada para o início do debate. Cobra de assessores a falta de divulgação das palestras, mas logo se acalma quando vê uma longa fila se formar na entrada da sala onde fará sua palestra.
Impassível, Shinyashiki, autor dos best sellers "O Sucesso É Ser Feliz" e "Os Donos do Futuro", diverte-se com a impaciência de Milú. "Ela poderia ser a maior dondoca deste país e, no entanto, é uma guerreira", avalia o psiquiatra-escritor.
"Rico no Brasil vê o mundo dele separado do resto do mundo. É um erro estratégico fundamental. Não existe a possibilidade de se viver num oásis. Esse filme não pode ter um final feliz."
Com o imenso auditório do BNDES quase lotado, Milú fala das suas experiências com trabalho voluntário. "Estamos começando um novo século com milhões e milhões de excluídos e isso não nos é permitido eticamente", adverte, para em seguida completar com a frase que orienta todo o seu trabalho: "As pessoas pobres não precisam de caridade. Precisam de oportunidade".
Ao final das palestras, Shinyashiki e Milú cantam junto com a platéia o jingle "Faça Parte", criado para a campanha de rádio do Ano Internacional do Voluntário. São cercados por dezenas de pessoas que querem conversar mais sobre o trabalho voluntário. Uma senhora, muito emocionada, diz que eles falaram "as coisas mais bonitas" que já ouviu na vida. Milú fica feliz em saber que se trata da consulesa da Suíça no Rio.

Olho no relógio
Sem muito entusiasmo, sempre de olho no relógio, às 14h30, Milú acaba aceitando o convite para uma refeição rápida no Café Europa, na rua Chile, para onde segue a pé. Pede um picadinho e coloca seus dois celulares sobre a mesa. Não resiste à sugestão do amigo escritor para provar um copo de chope tirado de uma torneira colocada no centro da mesa. Dá três garfadas e diz-se satisfeita.
É hora de correr de volta ao aeroporto para pegar o vôo das 16h04. Duas reuniões ainda a aguardam, no Centro de Voluntariado de São Paulo e no MAM. Durante os 45 minutos de vôo, vai pulando de um assunto a outro, sempre fazendo planos.
O primeiro deles é tornar permanentes as atividades desenvolvidas pelo ano internacional com a criação do Instituto Brasil Voluntário. Outro é encontrar um bom lugar e o dinheiro necessário para mudar a sede do MAM e tornar a instituição auto-sustentável.
"Estou sempre pensando em fazer coisas novas, mas não tenho gente nem tempo para fazer tudo o que quero", constata, sem mostrar desânimo, ao desembarcar no Aeroporto de Congonhas.
Às 17h35, já está na avenida Paulista, nas amplas instalações cedidas pelo Banco Francês e Brasileiro para abrigar o comitê. Ouve um relato de Maria Lúcia Meirelles Reis, sua prima, coordenadora do Ano Internacional do Voluntário e diretora do Centro de Voluntariado de São Paulo, que passou o fim de semana fazendo um balanço dos primeiros meses de campanha.
Milú abre um largo sorriso ao ser informada de que o Disque-Voluntário (0800-111814), que começou a funcionar em março, já recebeu mais de 16 mil chamadas de todo o país de pessoas interessadas em participar dos trabalhos.
Enquanto ouve os colegas de comitê, Milú vai assinando documentos que lhe trazem. Antes, lê com cuidado, quer saber de tudo nos mínimos detalhes. Aprova a campanha preparada para o Concurso Nacional da História do Voluntário - "Sua história de voluntário pode virar uma história para contar aos netos" - , a ser lançada nos próximos dias. Os 12 trabalhos selecionados serão publicados em livro e o vencedor ganhará uma viagem ao exterior.
É hora de voar para o último compromisso do dia, no parque Ibirapuera. Ronaldo Bianchi, superintendente geral do MAM, já está à sua espera para apresentar o relatório de abril da instituição. Em seu minúsculo gabinete, onde costuma passar a maior parte do dia, Milú fica feliz com os resultados. Já são 960 os sócios (pessoas físicas) e 47 os parceiros (empresas); as 17 exposições do museu receberam 67 mil visitantes e o acervo chegou a 3.281 obras.
A caminho do auditório, ela conversa em francês com o dono de uma empresa que prepara um evento no auditório. Encontra um copo quebrado no chão e manda chamar a faxineira. É um dos seus hábitos: cuida de cada entidade que dirige como se fosse sua casa.
"Até que hoje foi um dia calmo", comenta sorrindo, como se tivesse acabado de acordar, ao embarcar de volta para o Morumbi, pouco depois das 21h. Hoje vai dar tempo até para a sua sessão de reflexologia, hora de relaxar. À sua espera para o jantar, apenas um prato de carne moída com brócolis no vapor.


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