São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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DANUZA LEÃO

Muitas vidas

É muito difícil saber o que se quer.
É claro que algumas coisas são fáceis: você prefere ser bonita ou feia? Rica ou pobre? Feliz ou infeliz? -e por aí vai. Mas saber verdadeiramente o que se quer da vida significa saber quem se é, o que é muito difícil. A gente muda de um dia para o outro e da água para o vinho com mais freqüência do que gostaria de admitir.
É espantoso como se cobra coerência dos outros. "Ah, mas você disse que me amava", diz ela; "Pois é, e era até verdade, só que não amo mais", responde ele. E daí, como ficamos? Se essa declaração foi feita depois de dois uísques numa noite romântica ou diante do padre, muda alguma coisa? Há quem até ache que muda, só que os sentimentos é que mudam, e pretender que eles sejam eternos -bem, nem vamos falar disso.
Quando eu tinha uns 11, 12 anos, meu pai um dia perguntou "Eu fico pensando que tipo de moça você vai ser; será daquelas que o namorado, bem cerimonioso, sobe para buscar, ou vai preferir aquele que buzina para você descer?" Também fiquei curiosa, sem saber o que responder. A vida se encarregou de me mostrar que o cerimonioso nem pensar, mas que existem infinitas maneiras de viver; tendo uma certa disposição e saúde para recomeçar sempre, uma única vida é muito pouco para tudo o que se pode fazer.
Eu às vezes me vejo louca para viver como uma novaiorquina, morando num espaço mínimo, sem área de serviço, nem tanque nem empregada. Levando eu mesma minha roupa para a lavanderia, comprando um pacotinho de sopa em pó e a maior parte das vezes comendo um sanduíche na rua como jantar. Nunca mais um bolo com cobertura de limão com açúcar (feito no tabuleiro), nunca mais um camarão com chuchu, farinha e pimenta, nunca mais chegar em casa e encontrar a roupa de cama trocada e o banheiro cheirando a limpeza; ai, é de chorar.
Aí, na manhã seguinte, penso tudo diferente: que tal acabar com tanta urbanidade e ir morar no campo para sempre, ter um cachorro, uma horta, um jardinzinho? Os amigos que quiserem me ver que peguem a estrada; eu me tornaria mais ligada à terra, à natureza, e talvez assim compreendendo melhor o mundo, de onde viemos e para onde vamos. A natureza é boa para quem gosta, mas pode ser cruel: e as formigas, as libélulas, a alface que não cresce não se sabe por que, o tomate que o passarinho come antes de amadurecer? Ah, como é bom um supermercado, morder uma goiaba enorme plantada por um japonês e poder comer uma linda manga no mês de junho, mesmo que venha cheia de agrotóxico.
Aí eu me lembro do que é pegar um avião e sumir no mundo, sentar num café em Amsterdã, ler um jornal tomando um copo de vinho -ou 15-, comprar um sapato de salto 12 que nunca vou usar, chegar ao hotel e morrer de saudade dos meus filhos, dos meus gatos, da minha casa, gastar uma fortuna no telefone, e na manhã seguinte acordar procurando um estúdio para alugar, fazendo contas e mais contas, tendo a ilusão de nunca mais voltar para este país tão abagunçado e ficar lá para sempre, fora da realidade, esquecida de quem sou, de onde vim, sem saber para onde vou. Detalhe: todas essas decisões, em seu devido momento, são definitivas -claro.
Tudo isso é mais do que normal, só que não se tem a quem contar o que se passa em nossa cabeça e em nosso coração. Pode acontecer de alguém, coerente, perguntar "Mas você não me disse ontem que queria" sei lá o quê? Certas coisas não dá para explicar.
Às vezes é muito bom querer cada dia uma coisa; outras vezes se morre de inveja dos que sabem sempre o que querem e querem sempre a mesma coisa a vida toda.
Mas, se fosse todo mundo igual, não ia ter a menor graça.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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