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CASA DE DETENÇÃO
Drauzio Varella lança "Estação Carandiru", livro em que descreve as regras do maior presídio do país
Médico relata o "código penal não escrito"
DANIEL CASTRO
da Reportagem Local
O que leva um médico bem-sucedido a desenvolver um trabalho assistencial com presos.
Altruísmo? Nada. Foi por puro
fascínio pelo "ambiente da cadeia"
que o cancerologista Drauzio Varella, 56, perdeu pelo menos um
dia por semana, durante os últimos dez anos, atendendo a doentes de Aids na Casa de Detenção de
São Paulo, o maior presídio do
país, com cerca de 7.000 internos.
Nesse período, Varella estudou a
incidência de Aids no presídio, fez
amigos, descobriu "seres humanos
entre a escória da sociedade" e viu
as transformações causadas pelo
crack e pelo massacre de 92, que
resultou na morte de 111 presos.
Sem qualquer pretensão de denunciar o sistema prisional ou de
fazer um tratado médico sobre
Aids em presídios, Drauzio Varella
lança na quarta-feira, às 19h, em
São Paulo, na Fnac (rua Pedroso de
Morais, 858, Pinheiros, zona sudoeste), o livro "Estação Carandiru" (Companhia das Letras, 297
páginas, R$ 26,00), nas livrarias
desde quinta-feira.
O livro é a estréia de Varella no
mundo literário. Descreve a geografia, as relações políticas, personagens da Casa de Detenção e,
principalmente, o que Varella chama de "código penal não escrito",
o conjunto de regras dos presos,
cuja pena máxima é a morte.
"Estação Carandiru" relata como
os presos administram as celas
-elas são compradas ou alugadas-, os relaciona com os primatas e se espanta com a capacidade
deles de ter mulheres ou namoradas. "Algumas mulheres têm encantamento por presos", diz.
A seguir, trechos de entrevista
concedida à Folha na quinta-feira:
0
Folha - Quais são suas influências
literárias?
Drauzio Varella - Tenho muito
pouco tempo para ler. Tenho lido
os clássicos, mas não li Marcel
Proust ainda. Quem me influenciou muito foi Machado de Assis.
Tenho paixão por ele, pelo uso que
ele faz da linguagem.
Folha - Machado de Assis influenciou no seu modo de escrever?
Varella - Ele que me desculpe,
mas acho que sim (risos). Gosto do
jeito dele de contar histórias. Não
posso dizer que aprendi com ele,
mas admiro a capacidade dele de
descrever personagens com três ou
quatro palavras.
Folha - No seu caso, tinha também que descrever o artigo, o crime cometido pelo personagem...
Varella - Eu tentei fazer isso porque na cadeia há uma diversidade
muito grande de tipos. Aqui de fora, a gente imagina que aquilo é
uma massa de selvagens que se
matam. Não é.
O estelionatário não tem nada a
ver com o traficante, com o ladrão
de banco. São pessoas muito diferentes, largadas num mesmo lugar. Tentei caracterizar muitos
personagens.
Folha - O que levou um médico
como o sr. a se simpatizar por personagens tão impiedosos?
Varella - Acho que foi uma curiosidade muito grande pelo ambiente da cadeia. Não foi por vocação
médica. Não tive essa nobreza de
princípios. Sempre gostei de filmes
de cadeia.
Folha - O sr. fez amizades?
Varella - Sim. Nesse ambiente você obrigatoriamente tem de fazer
amizade. Tem gente que está no livro e que eu realmente penso nelas. Alguns que morreram e eu fiquei verdadeiramente triste. Lá
tem gente boa no contato. Tem
gente que está lá porque seguiu determinadas conexões em seu caminho.
Folha - Antes de entrar na Detenção o sr. já sabia da existência desse "código penal não escrito"?
Varella - Tinha uma noção folclórica. Pra mim uma das maiores dificuldades foi admitir que a cadeia
diminui a violência entre os homens, e não aumenta. Sempre
achei o contrário. Diminui.
Folha - Por quê?
Varella - Estudei os primatas,
descobri primatologistas americanos. Acontece o mesmo entre os
grandes primatas. Chipanzés, gorilas, você tranca e diminui a violência entre eles. Antes do massacre, o Pavilhão Dois, com 800 bandidos, ficou 210 dias sem mortes.
Folha - Inicialmente, o senhor iria
fazer uma pesquisa sobre Aids...
Varella - Eu fiz um estudo de prevalência de Aids. Depois descobri
que dava para fazer algo mais, dar
palestras. Eu tinha que dar uma retribuição ao sangue que colhi.
Folha - A primeira coleta de sangue foi em 89 e deu 17,3% de incidência de Aids. E depois?
Varella - Nós fizemos uma segunda em 94 e tinha caído para 13,7%.
No ano passado fiz um teste de saliva, sem valor científico, mas confiável, e deu pouco mais de 7%. No
geral, na população, a incidência
de Aids não chega a 1%.
Folha - Qual o motivo da queda?
Varella - Os estudos mostram
que o cidadão já chega lá com Aids,
porque é uma população de risco.
O que mudou mesmo as características foi o desaparecimento da
cocaína injetável. Quando entrou
o crack, a partir de 92, a cocaína injetável foi varrida. Aqui fora também houve o mesmo fenômeno.
Folha - Além do perfil do consumo de drogas, o que mais mudou
na Detenção nesses dez anos?
Varella - Acho que o massacre
mudou muito a história da cadeia.
Antes do massacre, a Detenção era
um lugar de disciplina, o diretor
andava pela cadeia inteira, conversava diretamente com os presos,
mecanismo que funciona para reduzir a pressão.
Depois do massacre não vi mais
diretor andando pela cadeia. Agora virou rotina preso render funcionário com faca para pedir
transferência de cadeia. O massacre funcionou como estímulo. Eles
sabem que não há qualquer possibilidade de aquilo acontecer outra
vez e isso aumentou a força que
eles já tinham.
A Detenção funciona em co-gestão, os presos administram as celas, a limpeza.
Folha - O que mais o impressiona
no código de ética dos presos?
Varella - O poder da palavra, a
tradição oral. Não que eles sejam
homens de palavras, mas aqueles
que não cumprem pagam um preço muito alto, às vezes com a própria vida. Não existe um código
penal escrito, mas tem pena de
morte. Um cara desprezado na cadeia não vale nada, não é respeitado.
Folha - As relações de poder também o impressionaram?
Varella - O poder não se dá pela
força, mas pela racionalidade. O
chefe não é o mais forte, mas aquele capaz de estabelecer mais alianças. Isso também é característica
dos primatas. Não só os presos,
mas os homens agem assim.
Folha - O que o senhor faria se
fosse preso e caísse na Detenção?
Varella - Eu acho que eu iria querer sair de lá vivo. Eu tentaria ser
essencial para o grupo.
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