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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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RIO

Muros mais altos, ruas fechadas e seguranças transformaram região, onde moradores costumavam ficar nas ruas à noite

Violência "mata" subúrbio cantado em samba

Zulmair Rocha/Folha Imagem
Geisa Flores de Jesus, filha de Zé Kétti, moradora da Cidade do Som, em Inhaúma, zona norte do Rio


ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

Quem hoje passa pelo subúrbio do Rio de Janeiro "vindo de trem de algum lugar" terá que procurar muito para encontrar "casas simples com cadeiras nas calçadas", como as descritas pelo violonista Garoto e pelos compositores Vinícius de Moraes e Chico Buarque na canção "Gente Humilde" (69).
A região, onde hoje moram 4,5 milhões de cariocas das zonas norte e oeste, transformou-se em consequência da expansão imobiliária, das favelas e, principalmente, da mudança de costumes causada pela violência. O medo fez surgir um padrão de vida até pouco tempo típico dos grandes condomínios de classe média alta da Barra da Tijuca.
Em Del Castilho (zona norte), os moradores da rua Genésio de Barros conseguiram autorização da prefeitura para fechar as três saídas da rua com grades e contratar quatro seguranças, depois de um assassinato no local em setembro do ano passado.
Na rua paralela à Genésio de Barros, onde não foi possível colocar grades, apelou-se para os quebra-molas. As casas também sofreram mudanças. Os muros, que tinham em média meio metro de altura, foram subindo e tirando dos moradores o hábito de ficar nas ruas de noite. Uma das casas instalou uma câmera.
Próximo às duas ruas, os moradores do conjunto de prédios conhecido como IAPC instalaram grades. Até três anos atrás, isso não existia ali. Hoje, os poucos que ainda não aderiram ao aparato de segurança só não o fizeram por falta de dinheiro.
Todo esse medo se explica: o bairro é rodeado pelas favelas Jacarezinho, Pica-Pau Amarelo, Chácara de Del Castilho e Fernão Cardim. Nos últimos cinco anos, quando os traficantes dessas favelas começaram a circular em "bondes", o comboio de carros com drogas ou armas virou um pesadelo para os moradores.
Almir Rodrigues, 55, sempre morou no conjunto. Ele conta que costumava soltar pipa na rua, sem medo. Seu filho, Almir Rodrigues Júnior, 8, aprendeu com o pai a soltar pipa. Ele, no entanto, só pode fazer isso no limite das grades.
"Aqui dentro dá para ele brincar, porque todo mundo toma conta do filho do outro, mas não deixo ele soltar pipa fora da grade de jeito nenhum", conta o pai.
Transformações como as encontradas em Del Castilho também são visíveis em Inhaúma. No bairro, já viveram sambistas famosos como Pixinguinha, Zé Kétti e Mestre Marçal. É lá que, ainda hoje, vive Dona Ivone Lara.
Muitos desses músicos se mudaram para o bairro quando, no final da década de 60, a Ordem dos Músicos do Brasil viabilizou a construção do conjunto, que ganhou o nome de Cidade do Som.
O sambista Zé Kétti foi um dos moradores. Sua filha, Geisa Flores de Jesus, 40, ainda vive lá com o filho, Rodrigo da Silva, 21.
Ela conta que nos primeiros anos havia rodas de samba na rua. A primeira onda de violência, causada principalmente por roubos e assaltos na década de 70, fez com que fossem colocados muros e uma cancela no condomínio.
Com a volta de seu pai ao lugar - ele morou em São Paulo na década de 80 -, Geisa de Jesus tentou repetir as rodas de samba. A iniciativa ia bem até a notícia de que um tiroteio entre traficantes havia parado a Estrada Velha da Pavuna, onde fica o condomínio.
Desde então, ela e o marido têm preferido frequentar rodas de samba no centro, onde os bares da Lapa e da rua do Lavradio voltaram a contratar conjuntos de choro ou samba. "Às vezes, a gente dorme em hotéis para não ter que voltar de madrugada", diz.
O medo dos moradores é ter que passar pelas duas principais avenidas da zona norte. As avenidas levam o nome de dois grandes pacifistas, Dom Hélder Câmara e Martin Luther King, mas costumam ser palco de falsas blitze promovidas por traficantes.
O filho de Geisa tem um olhar menos crítico para os novos modos de vida do subúrbio. "As pessoas falam que antigamente era melhor, mas hoje em dia tudo está mudado e temos que viver esse momento. Não deixo de sair à noite para me divertir", diz Silva.
Os sambas de Zé Kétti ajudam a entender um pouco dessas mudanças. Em 2000, pouco depois de sua morte, seus filhos acharam a letra de "Os Tempos Mudaram", que ele compôs em 1988 mas nunca gravou. Ela diz que "já não se pode andar nas ruas da cidade" porque "o povo está com medo" da criminalidade.
O samba "Opinião", de sua autoria, mostra também que nem todas as mudanças vieram para pior. Em 1964, Zé Kétti cantava que "daqui do morro, eu não saio, não. Se não tem água, eu furo um poço". Hoje, segundo o Censo 2000 do IBGE, apenas 1% dos domicílios dos dois maiores complexos de favela subúrbio (Maré e Alemão) não são abastecidas por rede geral de água.
Essa população que "não sai do morro, não" cresceu na última década em ritmo maior do que o resto da população do Rio, segundo dados do Instituto Pereira Passos, da prefeitura. A taxa de crescimento anual da população em favelas foi de 2,4%, contra 0,4% do restante da cidade.
Os dados do instituto mostram também que a população do Rio diminui de tamanho nos bairros da zona sul e do centro e aumenta nas regiões norte e oeste. Em outras palavras, o carioca, apesar de não morar mais em "casas simples com cadeiras nas calçadas", vai ficando mais suburbano.


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