São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2000


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SAÚDE MENTAL
Hospitais psiquiátricos abrigam alcoólatras e "moradores" que poderiam ser tratados em outros serviços
Internação dispensável consome R$ 230 mi

Jorge Araújo/Folha Imagem
Paciente seminua em área do hospital psiquiátrico São paulo, em Salvador (BA)


GABRIELA ATHIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

O Ministério da Saúde desperdiça anualmente até R$ 230 milhões em internações psiquiátricas inadequadas ou desnecessárias.
No ano passado, o governo federal gastou R$ 467,7 milhões com as internações nesse setor. Cerca de 50% do total de cerca de 850 mil pacientes internados anualmente como doentes mentais são alcoólatras, que não deveriam ser tratados em hospitais psiquiátricos e sim em serviços específicos, que não necessariamente exigem internação.
Há também pacientes "moradores", que vivem no hospital porque perderam os vínculos familiares. São os chamados doentes crônicos.
A estimativa da quantidade de alcoólatras internados nos hospitais psiquiátricos é feita por organizações não-governamentais, por pesquisadores e pelo próprio Ministério da Saúde, que reconhece o desperdício. O problema é que o sistema público de saúde ainda não oferece tratamento específico para esses pacientes.
Os pacientes crônicos são outra grande parcela da população internada. Para se ter uma idéia, eles ocupam cerca de 60% dos 18.134 leitos hospitalares psiquiátricos de São Paulo e 44% dos 11.300 leitos do Rio. O dado de São Paulo é do Conselho Regional de Psicologia. O do Rio, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Essas pessoas poderiam, em tese, ser atendidas nos ambulatórios especializados, chamados de Caps (centro de atenção psicossocial, que oferecem terapias ocupacionais, de grupo e atividades de arte) ou nos hospitais-dia, nos quais o paciente chega pela manhã e vai embora no fim da tarde.
O problema é que essa rede alternativa de atendimento apresenta um déficit grande em relação às necessidades do país.
Existem hoje 229 centros e núcleos de atenção psicossocial no país, quando seriam necessários, segundo o ministério, pelo menos 1.500 postos de serviço.
O desperdício é apenas a ponta mais visível da discussão sobre políticas públicas na área de saúde mental no país. O tema envolve interesses econômicos, ideológicos e divergências científicas sobre como devem ser tratados os pacientes portadores de transtornos mentais: em sistemas abertos, com participação da família e da comunidade, ou internados em hospitais psiquiátricos.
Boa parte dos hospitais psiquiátricos do país ainda é apenas um depósito de doentes. Ou, como denunciam os membros da luta antimanicomial, movimento criado há dez anos, uma "máquina de fazer dinheiro".
Pela lógica da remuneração dos hospitais psiquiátricos, lucra mais quem ficar mais tempo com o paciente internado. O SUS (Sistema Único de Saúde) autoriza a internação por um período de 45 dias, por meio de uma AIH (Autorização de Internação Hospitalar).
A mesma AIH pode ser prolongada por até 107 dias, desde que a secretaria estadual ou municipal (dependendo do nível de municipalização da saúde) autorize.
"Dificilmente o hospital desinterna o paciente antes do término da AIH, ou perde dinheiro", diz Pedro Gabriel Salgado, o novo coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, um dos membros mais atuantes da luta antimanicomial.
Essa lógica, que aumenta o lucro de quem segura o paciente, é a espinha dorsal do que especialistas chamam de "máfia da saúde mental". Uma diária em hospital psiquiátrico custa R$ 24,00. Em 30 dias, um paciente terá custado ao governo R$ 720,00.
"Em muitos casos, o governo paga para o paciente ficar sedado o dia inteiro, deitado em uma cama ou trancado, vivendo em condições subumanas", diz Marcus Vinícius de Oliveira e Silva, da comissão de direitos humanos do Conselho Federal de Psicologia.
A diferença entre a permanência na rede pública e privada é significativa. Enquanto os pacientes do SUS ficam, em média, 66 dias internados, os particulares dificilmente ultrapassam os 15 dias.
"O serviço é muito caro", diz Gabriel. Além disso, segundo ele, os pacientes com mais recursos fazem consultas periódicas e, nos casos mais graves, contam com acompanhantes treinados.
Gabriel tem uma espécie de "simulação" de quanto custariam esses pacientes, hoje internados, se tratados na rede extra-hospitalar. Segundo ele, um município de 100 mil habitantes necessitaria de um ambulatório e de um serviço de atenção diária para atender a demanda de cerca de 60 pacientes graves. Esses serviços, segundo ele, custariam R$ 55 mil ao mês, ou R$ 305 por paciente -metade do que é gasto hoje.
"Além do custo, você vai ter essas pessoas trabalhando e integradas à sociedade. Isso não tem preço", afirma o coordenador.
Para os defensores da reforma psiquiátrica, um dos indicadores da ineficiência do atual modelo é a reincidência das internações e o fato de alguns doentes tornarem-se moradores dos hospitais. A incidência de óbito na rede também é relativamente alta.
Os defensores do fim das instituições manicomiais afirma que, em princípio, não há razão para um paciente morrer em hospital psiquiátrico. Avaliam que isso é um sinal de que os doentes estão envelhecendo nesses hospitais.
Durante as longas internações, muitos pacientes acabam perdendo o vínculo familiar e desaprendem a viver em sociedade. Passam a ser dependentes do hospital, que assume o papel de asilo.
O grande desafio dos que defendem a extinção dos manicômios é garantir uma rede alternativa de atendimento, que efetivamente funcione. Hoje, na Bahia, por exemplo, um paciente demora até 70 dias para marcar uma consulta em ambulatório, por falta de médico em quantidade necessária.



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