São Paulo, segunda-feira, 13 de agosto de 2007

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MOACYR SCLIAR

O julgamento do macaco


O médium concentrou-se e depois, numa voz grossa, estranha, começou a falar. Eu sou Charles Darwin, disse

 Terminou em impasse a audiência pública promovida pela Secretaria do Meio Ambiente de Uberaba (MG) para decidir o futuro de um antigo morador do parque Mata do Ipê. Ele é acusado de invadir um prédio público, de furtar e destruir objetos e documentos. O réu é Chico, macaco-prego que vive no parque há cinco anos. Cotidiano, 11 de agosto de 2007

TENDO EM vista o impasse que se configurava com a situação do macaco Chico, decidiu-se levá-lo a julgamento. Não um julgamento convencional, já que tal coisa não se aplicaria a um réu primata; mas uma espécie de julgamento simulado, com juiz, advogados de acusação e de defesa, júri -enfim tudo o que deveria entrar num julgamento de verdade. A decisão teve imensa repercussão, porque Chico era muito conhecido na região -e personagem controverso, para dizer o mínimo.
Muitos achavam que o macaco era um verdadeiro símbolo do Brasil autêntico, o Brasil que está rapidamente desaparecendo; e seria um símbolo exatamente por causa da irreverência e das traquinagens. Outros, pelo contrário, achavam que Chico havia ultrapassado os limites.
Entre os detratores estava um promotor, cujos papéis Chico havia destruído e que não via a hora de aplicar ao bicho um castigo exemplar.
Mais difícil foi arranjar um advogado de defesa. Finalmente alguém se ofereceu para desempenhar a tarefa: era o doutor Simão (sim, por incrível que pareça esse era o nome), causídico aposentado que gostava de bichos e faria qualquer coisa para defendê-los. Os amigos, alarmados, advertiram-no: ele ia acabar pagando um enorme mico.
Mas o doutor Simão estava firme em sua decisão. Mais que isso, já tinha um plano sensacional para a defesa do acusado. Na primeira sessão do tribunal, anunciou que pretendia contar com uma testemunha especial: Charles Darwin.
Charles Darwin? O criador da teoria da evolução? Mas Darwin morreu há muito tempo, ponderou o juiz. O que, para o doutor Simão, não era problema: Darwin falaria do além através de um médium, um homem que se especializara em receber mensagens de cientistas famosos e que, inclusive, as traduzia para o português.
O tribunal reuniu-se novamente e lá estava o médium, um homem pequeno, magrinho. Tão logo o juiz deu por aberta a sessão, o doutor Simão chamou-o para depor, anunciando ao juiz, ao júri e ao público que quem falaria agora era ninguém menos que Charles Darwin.
O médium concentrou-se e depois, numa voz grossa, estranha, começou a falar. Eu sou Charles Darwin, disse, cientista que estudou a teoria da evolução. Acrescentou que se sentia muito feliz de estar no Brasil, país que conhecera, e que lhe fornecera muitos elementos para seus estudos. Pôs-se então a defender o Chico.
Pelo que sabia do caso, o macaco apenas exibira um comportamento autêntico, espontâneo. Mostrara a todos que os seres vivos devem seguir seus impulsos, mesmo que desagradando alguém. E, para ele, Chico tinha até condições de seguir uma carreira política, quem sabe num cargo de liderança.
A sessão virou um tumulto, gente discutindo acaloradamente. Quando, por fim, o juiz conseguiu acalmar o público, constataram que Chico tinha sumido. Pela janela, podiam avistá-lo no alto de uma árvore, comendo uma banana. Que é, para os macacos, o equivalente a uma sentença favorável.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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