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MOACYR SCLIAR
O julgamento do macaco
O médium concentrou-se e depois, numa voz grossa, estranha, começou a falar. Eu sou Charles Darwin, disse
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Terminou em impasse a audiência pública promovida pela Secretaria do Meio
Ambiente de Uberaba (MG) para decidir
o futuro de um antigo morador do parque Mata do Ipê. Ele é acusado de invadir
um prédio público, de furtar e destruir
objetos e documentos. O réu é Chico, macaco-prego que vive no parque há cinco
anos. Cotidiano, 11 de agosto de 2007
TENDO EM vista o impasse que
se configurava com a situação
do macaco Chico, decidiu-se
levá-lo a julgamento. Não um julgamento convencional, já que tal coisa
não se aplicaria a um réu primata;
mas uma espécie de julgamento simulado, com juiz, advogados de acusação e de defesa, júri -enfim tudo o
que deveria entrar num julgamento
de verdade. A decisão teve imensa
repercussão, porque Chico era muito conhecido na região -e personagem controverso, para dizer o mínimo.
Muitos achavam que o macaco
era um verdadeiro símbolo do Brasil
autêntico, o Brasil que está rapidamente desaparecendo; e seria um
símbolo exatamente por causa da irreverência e das traquinagens. Outros, pelo contrário, achavam que
Chico havia ultrapassado os limites.
Entre os detratores estava um promotor, cujos papéis Chico havia destruído e que não via a hora de aplicar ao bicho um castigo exemplar.
Mais difícil foi arranjar um advogado de defesa. Finalmente alguém
se ofereceu para desempenhar a tarefa: era o doutor Simão (sim, por incrível que pareça esse era o nome), causídico aposentado que gostava
de bichos e faria qualquer coisa para
defendê-los. Os amigos, alarmados,
advertiram-no: ele ia acabar pagando um enorme mico.
Mas o doutor Simão estava firme
em sua decisão. Mais que isso, já tinha um plano sensacional para a defesa do acusado. Na primeira sessão do tribunal, anunciou que pretendia
contar com uma testemunha especial: Charles Darwin.
Charles Darwin? O criador da teoria da evolução? Mas Darwin morreu há muito tempo, ponderou o
juiz. O que, para o doutor Simão, não
era problema: Darwin falaria do
além através de um médium, um homem que se especializara em receber mensagens de cientistas famosos e que, inclusive, as traduzia para
o português.
O tribunal reuniu-se novamente e
lá estava o médium, um homem pequeno, magrinho. Tão logo o juiz
deu por aberta a sessão, o doutor Simão chamou-o para depor, anunciando ao juiz, ao júri e ao público
que quem falaria agora era ninguém
menos que Charles Darwin.
O médium concentrou-se e depois, numa voz grossa, estranha, começou a falar. Eu sou Charles Darwin, disse, cientista que estudou a
teoria da evolução. Acrescentou que
se sentia muito feliz de estar no Brasil, país que conhecera, e que lhe fornecera muitos elementos para seus estudos.
Pôs-se então a defender o Chico.
Pelo que sabia do caso, o macaco
apenas exibira um comportamento
autêntico, espontâneo. Mostrara a
todos que os seres vivos devem seguir seus impulsos, mesmo que desagradando alguém. E, para ele, Chico tinha até condições de seguir uma
carreira política, quem sabe num
cargo de liderança.
A sessão virou um tumulto, gente
discutindo acaloradamente. Quando, por fim, o juiz conseguiu acalmar
o público, constataram que Chico tinha sumido. Pela janela, podiam
avistá-lo no alto de uma árvore, comendo uma banana. Que é, para os
macacos, o equivalente a uma sentença favorável.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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