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GILBERTO DIMENSTEIN
O jeitinho brasileiro é crime
O templo da Igreja Universal do
Reino de Deus em Osasco, onde
morreram 25 fiéis, tinha alvará
para funcionar apenas como cinema.
Esse documento foi descoberto
durante a investigação sobre as
causas do desabamento.
Desde 1995, havia notícias na
imprensa sobre a insegurança do
prédio, revelando a combinação
de irresponsabilidade privada e
omissão pública.
O desabamento do templo compõe a série de quatro tragédias do
mês de setembro, desenhando um
retrato da capacidade brasileira
de conviver desnecessariamente
com o perigo.
O que se traduz numa única
palavra: desrespeito.
O desrespeito está por trás do
teto que cai, mas também da perna decepada do campeão de iatismo Lars Grael, dos corpos
queimados dos romeiros que voltavam de ônibus de Aparecida
-e, por fim, da taxa de juros que
saltou para 50%.
É a face perversa do jeitinho
brasileiro.
Quando olhamos cada uma
dessas tragédias, constatamos
sem dificuldades que poderiam
ter sido evitadas ou, no mínimo,
amenizadas.
A última vistoria do Corpo de
Bombeiros no templo ocorreu em
1996; a validade se esgotou em
agosto do ano passado.
Há sinais de descuido no acidente que provocou a morte de 54
pessoas na rodovia Anhanguera,
ocorrido na madrugada de terça-feira.
A polícia colheu depoimento de
uma testemunha, informando ter
alertado o motorista sobre a cortina de fumaça na estrada; sugeriu que reduzisse a velocidade.
O motorista desconsiderou, não
viu importância na fumaça e
acabou dentro do fogo.
O culpado pelo acidente que decepou a perna de Lars Grael estava embriagado. Logo, com seus
controles afetados.
A tragédia que mais abalou o
país veio de Brasília -e tem tudo
a ver com o que aconteceu no
templo, no ônibus e na lancha.
Não são poucas as vozes que
têm alertado (e faz muito tempo)
governo e Congresso para a necessidade urgente de reformas
que reduzissem a bagunça dos
gastos públicos.
Não se acreditou que era urgente. Assim como o motorista não
viu perigo na fumaça.
Aos olhos dos investidores e especuladores, com tamanho déficit orçamentário combinado com
balança comercial desfavorável,
somos uma nação frágil.
A crise internacional veio para
todos, óbvio. Atingiu mais pesado
quem estava mais vulnerável.
Com o país pegando fogo, são
anunciados às pressas mais cortes
e jogam-se os juros na estratosfera.
Quantos empregos não serão
perdidos pela falta de cautela?
Ou quantos projetos sociais,
agora retardados, não reduziriam a mortalidade infantil?
A crise social se traduz na prática em milhões de fragmentadas
tragédias humanas.
Quem quiser ver em números,
leia o último relatório com o Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU.
Estamos bem abaixo em saúde
e educação do que nações bem
mais pobres.
Em educação, por exemplo, estamos colocados abaixo do Paraguai e Suriname.
Só a eleição justifica que o presidente Fernando Henrique Cardoso apresentasse o relatório orgulhosamente.
Não significa que não tenhamos avanços no país. Temos, e
muitos.
Mas não dá para comemorar,
tamanha a distância entre o que
somos e o que poderíamos ser.
Diante das tragédias, temos o
dom de encontrar rapidamente o
culpado -são os outros.
Na assessoria presidencial, semana passada, atribuía-se a responsabilidade da crise à Rússia,
ao caso amoroso de Bill Clinton,
ao Congresso e à falta de espírito
público dos especuladores -todos fatores que, obviamente, influem.
É uma perplexidade semelhante
à do bispo Edir Macedo. Não conseguia entender tal castigo para
quem não estava numa boate,
mas num templo, orando, alcançando a Deus.
A explicação é mais simples: os
outros, somos nós.
Compreensível economicamente que não tenhamos uma sistema educacional como da Alemanha ou Suécia.
Mas abaixo do Suriname ou
Paraguai?
Aí só pode ser explicado pela
perversidade moral do jeitinho
brasileiro que, no dia-a-dia, significa pura e tão somente impunidade.
Pagamos um preço por, no fundo, acreditarmos coisas como sermos, independentemente de esforço, o "país do futuro" ou de
que "Deus é brasileiro".
PS - Exemplo de responsabilidade vai ser visto amanhã em
São Paulo. Serão diplomados 400
dentistas brasileiros que entraram na campanha "adotei um
sorriso".
Eles se comprometem a cuidar
gratuitamente de crianças carentes até chegarem aos 18 anos.
Não vão ficar mais pobres. Talvez até ganhem dinheiro, já que
vão poder ostentar um selo em
seu consultório, atraindo a simpatia dos clientes.
É das idéias que não custam
nada para ninguém e conseguem,
rapidamente, melhorar a vida da
comunidade.
E-mail:gdimen@uol.com.br
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