São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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ANÁLISE

O bilhete único não dá prejuízo; mas, se der, é ruim?

VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL

Desde maio, quem vive em São Paulo pode pagar sua passagem com o bilhete único. Desde então, a despesa média do passageiro de ônibus tem diminuído a cada mês. Mais gente passou a viajar de ônibus. O preço da passagem não aumentou. A arrecadação de prefeitura e empresas de transporte até cresceu um pouco.
Até agosto, tudo melhorou, indicam os números. Houve mágica? Ou melhorou mesmo a administração do transporte no governo de Marta Suplicy (PT)? Se houve melhora, isso vai durar? Qual o custo adicional, se é que vai haver mais custos? Resposta: houve melhora na administração, mas o futuro das finanças do sistema de transporte com o bilhete único depende de vários fatores, alguns deles ora imprevisíveis.
O bilhete único permite que, pelo preço de uma passagem (R$ 1,70), se possa fazer quantas viagens quiser em duas horas. Passa-se o cartão magnético na roleta (ou catraca, como se diz em São Paulo) e é descontado o valor de uma passagem no cartão magnético do bilhete único. Daí em diante, pode-se trocar de ônibus quantas vezes se quiser, dentro do limite de duas horas.

Críticas e como funciona
O argumento principal dos críticos é o seguinte: quanto mais os passageiros souberem usar o bilhete único, mais vão fazer uma segunda ou terceira viagem de graça. Haverá mais viagens e menos passagens serão pagas. Em dado momento, haveria "prejuízo". A prefeitura teria de gastar mais dinheiro para compensar as empresas pelas viagens gratuitas -teria de aumentar o subsídio.
Por ora, não existe tal problema, devido ao sistema de remuneração das empresas de ônibus.
Grosso modo, tal sistema funciona da seguinte maneira. A prefeitura recolhe tudo o que se arrecadou nas roletas dos ônibus ou com a venda de passagens (créditos) de bilhetes únicos, R$ 131 milhões em agosto. A esse valor acrescenta algum dinheiro, a título de subsídio para passageiros como os idosos (isentos), e repassa o total para o conjunto das empresas (a arrecadação mais o subsídio). Em agosto, a prefeitura pagou R$ 145 milhões ao conjunto das empresas.
Houve, pois, um subsídio implícito de cerca de R$ 14 milhões nesse mês (o equivalente a arrecadação menos remuneração). A prefeitura reservou este ano R$ 280 milhões para subsídios, cerca de R$ 23,3 milhões por mês, para todo o sistema de transporte. Em agosto, deu e sobrou para subsidiar ônibus e ainda lotações.
A prefeitura, pois, não remunera as empresas de transporte por viagem feita nos ônibus. É verdade que, desde maio, cresceu muito o número de viagens em ônibus. Mas não houve custo adicional para as empresas, que continuaram a usar o mesmo número de veículos. A prefeitura continuou remunerar as empresas do mesmo modo como o fazia antes.

A "mágica" vai durar?
Isso vai continuar a funcionar assim? Não, por dois motivos. Primeiro: pode ser que as pessoas façam tantas viagens de graça com o bilhete único e tanta gente passe a andar de ônibus devido a esse benefício que os ônibus fiquem lotados e a arrecadação possa até cair: o serviço pioraria e poderia demandar mais subsídio.
Seria preciso comprar mais ônibus. Isto aumenta o custo das empresas, que pediriam aumento da sua remuneração. A prefeitura teria de gastar com subsídio adicional ou aumentar a passagem. Isso é apenas uma hipótese, ainda longe de se verificar na prática.
Segundo: a prefeitura deve mudar o sistema de remuneração das empresas, como é previsto no contrato da licitação do transporte. Segundo o secretário de Transportes, Gérson Bittencourt, tal mudança deve ocorrer em dezembro. A prefeitura passaria, então, a pagar às empresas por passageiro que passar na roleta. Aí, o problema fica mais complicado.

O novo sistema
No novo sistema, quanto mais gente viajar de ônibus, mais a prefeitura vai gastar com a remuneração das empresas. A prefeitura vai pagar por viagem, por cabeça, não importa se o passageiro fez uma segunda ou terceira viagem de graça usando o bilhete único.
Isto é, em tese, quanto mais gente viajar de graça, maior o déficit da prefeitura. Menos se arrecada, em média, por passageiro, mais se paga às empresas. Desde maio, tem aumentado a proporção dos passageiros que viajam de graça devido ao bilhete único. Em julho, eram cerca de 15%; em agosto, 20%.
Na média de agosto, dividindo o total da remuneração das empresas pelo número de viagens, a prefeitura teria pago, para cada viagem, R$ 1,40 (o pagamento não foi feito assim, por cabeça. Isto é apenas uma média).
Com a tarifa a R$ 1,70, seria preciso que cerca de 83% dos passageiros pagassem integralmente as passagens a fim de compensar as viagens feitas de graça. Isto é, a fim de que se obtenha dinheiro suficiente para a prefeitura remunerar as empresas por R$ 1,40, sem "déficit". Mas, em agosto, só o equivalente a 72% das viagens foram pagas integralmente a R$ 1,70. Haveria "déficit", caso o novo sistema estivesse valendo.

Mas vai haver déficit?
Depende. A prefeitura diz que tem como administrar o problema: pode pagar às empresas menos de R$ 1,40 por viagem. Pode reduzir custos (com mais corredores de ônibus, o custo das empresas cai: há menos congestionamento, gasta-se menos diesel). Pode reduzir as viagens feitas com bilhete único (colocando uma linha só para cobrir um trajeto que hoje é feito por duas linhas em que se usa muito bilhete único).
Com a concessão do serviço de transporte por áreas da cidade, com o passa-rápido e outros controles, tornou-se mais viável administrar de maneira mais eficiente o sistema -a prefeitura sabe até quais linhas de ônibus são deficitárias, e em quanto.
O que pode dar errado? As empresas podem não aceitar a nova remuneração: poderia haver problemas políticos, locautes, como no passado. O contrato de licitação, que define reajustes de remuneração e cálculos de custos das empresas, é bem maleável e pode dar margem a várias cenários de tarifa e despesas para a prefeitura.
A prefeitura pode ter de pagar mais às empresas. Pode ter de aumentar o preço da passagem. Pode deixar de exigir das empresas a renovação da frota de ônibus ou as obras que deveriam fazer em terminais, a fim de aumentar a renda dos empresários por outros meios. Pode limitar o número de viagens gratuitas feitas com o bilhete único. Tudo depende de preços, custos e proporção de passageiros viajando de graça.
Com a remuneração por viagem, a tendência do déficit, a diferença entre o que se arrecada e as despesas, é aumentar, se tudo o mais for mantido como está. Mas é muito difícil e cedo para prever coisas como quantos passageiros virão a viajar de graça.

Subsídio social é ruim?
Cerca de dois terços das pessoas que ganham até três salários mínimos não recebem nenhum auxílio em dinheiro para custear seu transporte na Grande São Paulo, de acordo com pesquisa do Itrans (Instituto de Desenvolvimento e Informação em Transporte) . Segundo estudo de Alexandre Gomide, do Ipea, apenas 0,49% das pessoas que recebem este auxílio estão entre as que ganham até um salário mínimo.
O bilhete único melhora a vida dessas pessoas. Permite que parte delas procure trabalho, possa ter empregos em bairros mais distantes de onde moram, consiga ir ao posto de saúde ou apenas se divertir ou freqüentar seus amigos e parentes mais distantes. O benefício social é relevante. O problema é saber quem tem direito a ele e quem vai ficar com a conta.

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