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PASQUALE CIPRO NETO
"Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher"
Dia desses, por alguma razão que já esqueci, revi uma
questão da Fuvest a respeito deste
fragmento de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado
de Assis: "Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento...".
Neste espaço, já tratei do valor
da palavra "suposto" nesse trecho
de "Memórias Póstumas". Trata-se de uma conjunção concessiva,
equivalente a "embora", "ainda
que". No "Dicionário Houaiss", o
vocábulo aparece com a marca
"ant.", usada para indicar que se
registra pouco uso do termo ou
que ele já não é usado mesmo.
O fato de um termo estar em desuso ou de pertencer a um território restrito da linguagem não dá
a ninguém o direito de supor que
seja inútil ou desnecessário conhecer o significado e o emprego
desse termo. Muito menos dá a
ninguém o direito de achar que a
escola não deve tratar disso nas
aulas de língua materna. Quem
pode tirar dos cidadãos o direito
de ler e entender Machado ou
Fernando Pessoa, por exemplo?
Pois bem. Voltando ao fragmento de Machado, convém deixar claro que "Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento..." equivale a "Embora o uso
vulgar seja começar pelo nascimento...". Nesse trecho, o narrador explica por que vai adotar
método diferente do tradicional
para abrir suas memórias, ou seja, por que vai iniciar as memórias pelo fim, e não pelo princípio.
Como se sabe, as conjunções
concessivas (e -convém relembrar- "suposto" é uma delas) estabelecem nexo de contraste, de
quebra da expectativa ou da normalidade. Sabendo de tudo isso, o
leitor pode tranqüilamente ler e
entender o que significa "Suposto
o uso vulgar seja começar...".
Para encerrar o capítulo "suposto", convém lembrar que nos
textos clássicos se registra também o emprego da locução "suposto que", que tem o mesmo valor concessivo de "suposto", "embora", "ainda que" e "apesar de".
Por falar em construções antigas, o mesmo Machado nos traz à
lembrança um caso interessante
do emprego (inusual entre nós)
do verbo "esquecer", presente neste fragmento de "Quincas Borba":
"Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher". A frase é dita por
Cristiano Palha a Rubião, personagens do célebre romance.
Machado emprega o verbo "esquecer" com a regência "algo esquece a alguém", em que o sujeito
de "esquecer" não é a pessoa, mas
a coisa, o fato. No exemplo machadiano, o sujeito de "esqueceu-me" (que significa "caiu no meu
esquecimento") é a oração "apresentar-lhe minha mulher". De fato, foi o ato de apresentar a mulher a Rubião o que caiu no esquecimento de Cristiano Palha.
Entre nós, esse emprego de "esquecer" parece restrito aos clássicos da literatura. Em Portugal,
seu uso ainda é corrente, como
atesta um cartaz do Ministério do
Turismo que vi certa vez em Lisboa: "Açores, férias que nunca esquecem". Tradução: "Férias que
nunca caem no esquecimento".
O "Houaiss", lançado em 2001,
simplesmente não toca no assunto, o que parece imperdoável (o
desuso não justifica a ausência da
acepção). O "Novo Aurélio Século
XXI", lançado em 1999, registra o
caso, com estes exemplos: "Tudo
esquece neste mundo" (Camilo) e
"A auréola momentânea do libelista de partido passou e esqueceu" (Latino Coelho). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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