São Paulo, quinta-feira, 13 de outubro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher"

Dia desses, por alguma razão que já esqueci, revi uma questão da Fuvest a respeito deste fragmento de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis: "Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento...".
Neste espaço, já tratei do valor da palavra "suposto" nesse trecho de "Memórias Póstumas". Trata-se de uma conjunção concessiva, equivalente a "embora", "ainda que". No "Dicionário Houaiss", o vocábulo aparece com a marca "ant.", usada para indicar que se registra pouco uso do termo ou que ele já não é usado mesmo.
O fato de um termo estar em desuso ou de pertencer a um território restrito da linguagem não dá a ninguém o direito de supor que seja inútil ou desnecessário conhecer o significado e o emprego desse termo. Muito menos dá a ninguém o direito de achar que a escola não deve tratar disso nas aulas de língua materna. Quem pode tirar dos cidadãos o direito de ler e entender Machado ou Fernando Pessoa, por exemplo?
Pois bem. Voltando ao fragmento de Machado, convém deixar claro que "Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento..." equivale a "Embora o uso vulgar seja começar pelo nascimento...". Nesse trecho, o narrador explica por que vai adotar método diferente do tradicional para abrir suas memórias, ou seja, por que vai iniciar as memórias pelo fim, e não pelo princípio.
Como se sabe, as conjunções concessivas (e -convém relembrar- "suposto" é uma delas) estabelecem nexo de contraste, de quebra da expectativa ou da normalidade. Sabendo de tudo isso, o leitor pode tranqüilamente ler e entender o que significa "Suposto o uso vulgar seja começar...".
Para encerrar o capítulo "suposto", convém lembrar que nos textos clássicos se registra também o emprego da locução "suposto que", que tem o mesmo valor concessivo de "suposto", "embora", "ainda que" e "apesar de".
Por falar em construções antigas, o mesmo Machado nos traz à lembrança um caso interessante do emprego (inusual entre nós) do verbo "esquecer", presente neste fragmento de "Quincas Borba": "Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher". A frase é dita por Cristiano Palha a Rubião, personagens do célebre romance.
Machado emprega o verbo "esquecer" com a regência "algo esquece a alguém", em que o sujeito de "esquecer" não é a pessoa, mas a coisa, o fato. No exemplo machadiano, o sujeito de "esqueceu-me" (que significa "caiu no meu esquecimento") é a oração "apresentar-lhe minha mulher". De fato, foi o ato de apresentar a mulher a Rubião o que caiu no esquecimento de Cristiano Palha.
Entre nós, esse emprego de "esquecer" parece restrito aos clássicos da literatura. Em Portugal, seu uso ainda é corrente, como atesta um cartaz do Ministério do Turismo que vi certa vez em Lisboa: "Açores, férias que nunca esquecem". Tradução: "Férias que nunca caem no esquecimento".
O "Houaiss", lançado em 2001, simplesmente não toca no assunto, o que parece imperdoável (o desuso não justifica a ausência da acepção). O "Novo Aurélio Século XXI", lançado em 1999, registra o caso, com estes exemplos: "Tudo esquece neste mundo" (Camilo) e "A auréola momentânea do libelista de partido passou e esqueceu" (Latino Coelho). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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