São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

O último trabalhador

Trabalhador produz mais e ganha menos. Dinheiro, 22.out.2000

A regra básica era: produzir cada vez mais a um custo cada vez menor. Custo cada vez menor significaria, para fins práticos, realistas, um número decrescente de trabalhadores ganhando um salário sempre decrescente. Mas como chegar lá? Como alcançar uma situação até então apenas descrita em utopias do tipo "Admirável Mundo Novo"?
Problema complexo, finalmente resolvido com a descoberta do supertrabalhador.
Que era, na aparência, um homenzinho comum, franzino. Diante de máquinas e aparelhos, contudo, transformava-se. Possuído de energia extraordinária e com uma habilidade assombrosa, ele operava sozinho uma vasta parafernália. Foi assim que a TV o mostrou ao público: fazendo funcionar, sozinho, uma grande fábrica, toda automatizada.
A essa fábrica, outras, similares, foram conectadas. Nenhum problema para o supertrabalhador: ele dava conta de tudo. Não apenas produzia, comercializava também, via Internet, fazia toda a contabilidade, depositava o dinheiro... Como disse um embasbacado empresário: se há alguém que se possa considerar pau para toda obra, é esse homem. Era vê-lo correndo de um lado para outro, ora operando os controles de uma supermáquina, ora trabalhando no teclado de um supercomputador. E coisa interessante: ganhava cada vez menos.
Nem poderia ser de outra maneira. Em primeiro lugar, só havia um emprego, um único emprego, de supertrabalhador. Se ele fosse despedido, simplesmente não teria onde aplicar seus conhecimentos, o que simplesmente neutralizava sua capacidade reivindicatória. Por outro lado, atrelado como estava ao gigantesco esquema de produção, nem tinha tempo para gastar o pouco que ganhava e que, para alguém solteiro e sem vícios, parecia mais do que suficiente. De modo que um dia o colegiado empresarial que o empregava decidiu: não receberia mais salário algum. Comida, sim; casa, sim; roupa lavada, sim; assistência médica, sim; alguma diversão, sim; salário, não. Com o que se chegava à situação ideal: produtividade infinita com salário zero.
Alguns jornalistas têm tentado ouvir o supertrabalhador a respeito dessa situação. Alegando falta de tempo, ele recusa-se a dar declarações. Aliás, de modo geral, recusa-se a falar, ainda que às vezes monologue coisas que, ao supervisor, parecem sem sentido. "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos" é o que ele diz, mas para quem está falando? E o que está dizendo?
Isso, ao fim e ao cabo, não tem importância alguma. No passado, alguns trabalhavam cantando, outros, assobiando. O supertrabalhador monologa. Não há mal nenhum nisso, diz o supervisor, mas apressa-se a acrescentar:
-Desde que, claro, a produção não seja prejudicada.



O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


Texto Anterior: Reprovação de Pitta é recorde
Próximo Texto: Atmosfera: Estados do Sul têm chuva e céu nublado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.