São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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GILBERTO DIMENSTEIN
Feliz Natal, senhora Pitta

Nicéa Pitta, mulher do prefeito de São Paulo, Celso Pitta, queria espalhar árvores de Natal luminosas pela cidade.
Tamanho era seu desejo que ordenou, no ano passado, às administrações regionais que se virassem para arrumar dinheiro, fazendo caixinha com empresários.
Num zelo estético, esmerou-se nas minúcias, encomendou o desenho, listou os produtos (com as respectivas marcas) a serem adquiridos para a árvore -quem sabe para economizar tempo, informou o nome e telefone dos fornecedores.
Descuidou de um detalhe que lhe parecia insignificante: a simples condição de mulher de prefeito não lhe confere o direito de mexer em recursos públicos.
O descuido, também encarado como insignificante pelos gentis funcionários, não impediu a realização do projeto "Praças Natalinas".

O prazeres estéticos de Nicéa Pitta estão registrados no documento encaminhado às administrações regionais -hoje, mais uma peça na galeria de suspeitas de propinas que envolvem a prefeitura.
Ainda é cedo e leviano acusá-la de eventual confraternização natalina com os fornecedores. Nem é o essencial.
Escandaloso, no caso, é o que não está escondido. Funcionários públicos obedecendo, ilegalmente, às veleidades de uma mulher deslumbrada com o poder.
As árvores deixam de ser símbolo do Natal, mas de uma cidade sem governo, sem lei, e, tirando raríssimas exceções, sem punição.

Se um quinto dos rumores sobre as investigações das propinas municipais for verdade, vamos ficar com a sensação de metástase urbana -a cidade tomada pelo câncer.
Rico em simbolismo que as denúncias mostrem como se fazia dinheiro com lixo.
O paulistano preferia se iludir, supondo que a roubalheira estava mais concentrada em Brasília; preconceituosamente, acusavam-se os nordestinos, com sua indústria de seca. Ou os cariocas, vítimas da disseminação do crime organizado.
Cansei de ouvir a idéia estúpida de que Brasília era corrupta porque não tinha gente em volta.
Em um dia, passa mais gente na frente da Câmara Municipal em São Paulo do que em um ano no Congresso.
Por sinal, não foi sem motivo que Nicéa apelidou seu cachorro de "vereador"-só dá a pata quando recebe comida.

Como sabe o leitor que acompanha esta coluna, sou um paulistano otimista -esses episódios me deixaram ainda mais otimista.
Meu otimismo é baseado no fato de que o número de habitantes da cidade beira a estabilização e, ano a ano, aumenta o grau de escolaridade; além do fato óbvio de que a cidade é o centro nacional da fertilidade criativa, com uma notável energia.
A herança que trouxe de Nova York foi passar a acreditar no renascimento urbano, desde que a comunidade se rebele.

Faço, aqui, minha aposta otimista. Talvez a CPI criada pela Câmara Municipal seja uma farsa; até porque a maioria é do governo.
Talvez a polícia e o Ministério Público não tenham fôlego ou competência para aprofundar as investigações.
Duvido, porém, que a imprensa tire os dentes das investigações. Não só pelo sentido ético dos jornais, mas por uma questão de sobrevivência diante dos leitores.

As descobertas estão absorvendo o interesse da população, provocando indignação generalizada.
Se chegamos aonde chegamos é porque os habitantes não acompanham nem fiscalizam o poder municipal -críticas a nós, da imprensa, vamos reconhecer, não são descabidas.
Inevitável que se discutam cada vez mais mecanismos para administrar melhor a cidade, democratizando a estrutura de poder. A cidade, como está, é ingovernável.
A lei já prevê a criação de subprefeituras, com orçamento próprio para cuidar do buraco de rua até a escola, fiscalizadas por conselhos eleitos.
Faltou até agora vontade política para se implementar essa descentralização.

O paulistano está emocionalmente esgotado, enfurecido com o trânsito, enchentes, lixo visual.
O blecaute da semana passada parecia mais um fato imprevisível na, digamos, rotina da imprevisibilidade.
Não havia um movimento de reação -está começando e, aposto de novo, não tem volta.
A rebeldia vai fazer o paulistano deixar de se sentir acuado, assim como se sente acuado e impotente diante dos fiscais.
É daqueles estopins históricos que redirecionam a vida de uma comunidade.

P.S. - Ouvi do mineiro Eduardo Giannetti, morador de São Paulo e um dos mais férteis pensadores brasileiros, uma idéia tão boa quanto polêmica para melhorar a cidade: fazer dos cemitérios parques públicos.
Os túmulos iriam para um lugar mais distante.
São Paulo receberia uma lufada ecológica se transformasse esses espaços fúnebres em jardins, criando áreas de convivência.
Claro que muitas famílias se sentiriam indignadas. Seria, entretanto, um generoso gesto de doação, transformando morte em vida.

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