São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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DANUZA LEÃO

Mudanças radicais

Em pânico, ele ligou para o amigo. A empresa onde trabalha está em fase de enxugamento, e os boatos rolam pelos corredores; por isso está nervoso, preocupado, histérico, arrancando os cabelos.
Há anos se habituou a um salário de sonho; passa os fins de semana onde quer, frequenta os restaurantes mais caros, troca de carro todo ano e viaja sem problemas -cartão de crédito é para isso mesmo. Mas agora está precisando de conversar. Na verdade, não quer conversar, quer falar; se encontraram num sábado à tarde e, com um uísque bem grande na frente, ele se abriu.
Começou dizendo que, se realmente for demitido, não sabe o que vai fazer da vida. Felizmente não vai precisar se mudar: o apartamento é próprio, está pago, e nos últimos anos guardou algum dinheiro para, numa eventualidade, poder viver um ano sem trabalhar e sem baixar -não muito- o padrão de vida. Mas, só de pensar, fica em pânico. E se nesse prazo não pintar nada?
Seu trabalho é bom, ele gosta do que faz, mas o estresse é permanente. Claro: uma atividade que envolve responsabilidade, luta por poder e por dinheiro tem que ser estressante.
Ele não pára de falar: como será sua vida sem aquele salário maravilhoso, depositado rigorosamente todo dia 5, com direito a férias e 13º? Como viver com menos? Que gastos vai cortar sem sofrer demais? O personal trainer será o primeiro -pode perfeitamente fazer ginástica sozinho-, e o analista, o segundo; afinal, deita no divã duas vezes por semana para falar de problemas de trabalho e se suas previsões se confirmarem acaba o assunto. Pode também dar um tempo no vinho às refeições; cá entre nós, por mais que tenha se esforçado fazendo cursos e lendo a respeito, nunca conseguiu verdadeiramente distinguir um vinho inacreditável de um mais ou menos; que culpa tem de ter passado a infância tomando guaraná?
De roupa, não vai precisar tão cedo; sem reuniões com empresários, os ternos -todos de grife, faz parte do jogo- vão ficar mesmo é num fundo de armário, com os bolsos cheios de naftalina. Aí, deu o primeiro sorriso: reuniões nunca mais, que felicidade.
E as viagens? Quatro ou cinco vezes por ano ia ao exterior por alguns dias -a trabalho, claro- e não tinha tempo nem para comprar uma gravata. Isso sem falar das dezenas de vezes que pegava um avião de manhã para outra cidade e voltava à noite, literalmente arrasado. Fora os coquetéis e jantares para fazer contatos, na perspectiva de fechar novos negócios, e as noites mal-dormidas pensando "será que vou conseguir?". E isso lá é vida?
Sorriu pela segunda vez e serviu mais um uísque. Os filhos, já grandinhos, iriam poder continuar no mesmo colégio pelo menos por um ano. Mas adeus professores particulares; iriam ter mesmo que dar duro nos estudos como todo mundo e começar a aprender o que é a vida, coisa que ele nunca teve coragem, nem tempo, nem paciência para ensinar -mais um ponto a favor, mais um sorriso. E mais um uísque.
A vida vai mudar, claro, e longe dele pensar que é melhor ter pouco dinheiro do que muito. Lembrou-se dos tempos em que era uma emoção ir a Nova York. De uns anos para cá, a cidade tornou-se sinônimo de trabalho duro, de reuniões intermináveis; quem sabe ele recupera o tempo perdido? Lembra-se de quando era jovem, tinha pouco dinheiro e ia para a Washington Square sonhar com o futuro. E pensa que há séculos não vai a um cinema de tarde, com tanto filme bom para ver, nem conversa com um amigo para questionar a vida. Não por falta de tempo, é que simplesmente não dá. E a mulher com quem dorme na mesma cama e a quem há anos não pergunta se é feliz? Aliás, há quanto tempo não se faz a mesma pergunta?
Foi falando, falando e lembrou que toda segunda-feira de manhã a arraia mais miúda do escritório chegava contando o fim de semana: um churrasco num sítio, com direito a pagode, e o relato do que tinham feito acabava em risadas gerais. Ele, que havia passado o sábado e o domingo espichado no sofá se recuperando do estresse da semana, ouvia com o maior desprezo, achando tudo uma pobreza. Embalado pelo quarto uísque, ele decide: segunda-feira comunica ao chefe que está indo embora.
O futuro? De uma coisa ele sabe, por experiência própria: mais dia menos dia, o telefone vai tocar.
Ele sempre toca.

E-mail: danuza.leao@uol.com.br



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