São Paulo, quinta-feira, 14 de agosto de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

O leite, na leiteria; o doce, na...


O que há por aqui é "doceria", quando não "doceira", que às vezes designa indevidamente o estabelecimento comercial

E ENTÃO, CARO LEITOR? Onde se fabricam e/ou se vendem doces? A pergunta talvez fosse inútil ou tola, não fosse um detalhe: nem sempre o que efetivamente se usa é reconhecido ou registrado pelos dicionários, cujo papel -teoricamente- é ou deveria ser o de funcionarem como "cartórios" do léxico.
Aos fatos: se você tem aí alguma edição antiga do "Aurélio", experimente procurar "doceria". Nada de nada. Se tiver à mão a (ainda) única edição do "Houaiss" (2001), repita a operação. De novo, nada de nada.
Onde será, então, que se fabricam e/ou vendem doces, santo Deus?
Se o "Houaiss" ainda está aberto, aproveite a consulta e procure "doçaria". Está lá: "1) quantidade ou porção grande de doces; 2) local onde se fabricam e/ou se vendem doces variados". Onde? No Brasil?
Conheço poucas "doçarias" instaladas em nossas terras. Sei que há uma em Atibaia, que produz deliciosos doces portugueses, com ovos pelas tampas (o que é quase um pleonasmo, em se tratando de doces lusos). O que há mesmo por aqui é "doceria", quando não "doceira", que, nos cartazes e fachadas, muitas vezes não designa a profissional que produz e/ou vende doces, mas o próprio estabelecimento comercial.
Justiça seja feita: em suas últimas edições (a partir da de 1999, creio), o "Aurélio" registra "doceria". O registro, no entanto, é "tímido", já que o dicionário diz simplesmente isto: "S. f. 1. Doçaria (2)". O leitor certamente sabe o significado de "S. f." ("substantivo feminino"). A tradução de "Doçaria (2)" é esta: o dicionário manda-o ir ao termo "doçaria" e levar em conta a segunda acepção apresentada ("Lugar onde se fabricam e/ou vendem doces; doceria").
Peço licença para reforçar algo que para alguns é óbvio, mas para outros é motivo de dificuldade ou mesmo de "fracasso" no uso dos dicionários. Refiro-me à necessidade de aprender a consultá-los (os dicionários), o que significa, antes de tudo, conhecer os seus códigos.
Quando manda o consulente procurar "doçaria", o "Aurélio" quer dizer que essa forma é preferível (a "doceria"), mais tradicional ou canônica etc. Essa caracterização pode até ser objeto de contestação, mas é bem melhor (ou menos mau) apresentá-la do que simplesmente ignorar o termo "doceria", como faz o "Houaiss" no caso, talvez por simples cochilo, inconsistência metodológica ou falha na "checagem".
Explico o que acabo de afirmar.
Em "-eria", o "Houaiss" (sim, há entradas como essa nesse monumental dicionário) diz o seguinte a respeito desse sufixo: "Do francês -erie, em curso no português já no século XV, vem sendo objeto de rejeição didática purista...". Em seguida, a obra cita o sufixo "-aria", que define como "canônico", ou seja, que está de acordo com o padrão ou norma. O problema é que, ao não registrar "doceria", o "Houaiss" pode passar a impressão de também ser purista e/ou adepto do "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Não é nem uma coisa nem outra -a julgar pelo que se vê nele em inúmeras outras passagens.
O fato é que, por essas e (muitas) outras, é importantíssimo consultar sempre mais de uma obra. Por falar nisso, o "Vocabulário Ortográfico" (da ABL) registra as duas formas ("doceria" e "doçaria").
Há mais a dizer sobre o tema; será necessário, pois, voltar a a ele numa das próximas colunas. É isso.

inculta@uol.com.br


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