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HUMANISMO X INDIVIDUALISMO
Os dois grandes paradoxos do Santa
MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA
Ser ex-aluno do Santa Cruz, ou simplesmente Santa, é como participar de uma confraria involuntária. Muitos se sentem membros de casta superior, cultivam esse estado, têm na agenda nomes de gerações de ex-alunos, trabalham
cercados por deles, participam de encontros, e, provavelmente, seus
descendentes estarão naquele espaço incomparavelmente amplo
de Alto de Pinheiros.
Mas o que há de diferente no
Santa? Dois grandes paradoxos. É
uma escola de ensinamento humanístico da elite paulista, grande
parte dela de doutrina individualista.
"É uma escola meio elitista, você sai de lá sem saber muito o que
é a realidade da vida. Só se convive com gente da mesma camada
social. Eu só fui aprender da vida
realmente através do teatro. É um
mundo meio fechado. Lá você
não tem amigos gays, pretos, que
não têm grana", afirma Flávia
Cauduro, 27, atriz.
Religião
"Você vive numa espécie de "redoma". Percebi melhor isso quando fui estudar na Unicamp, convivendo com pessoas que tinham
uma história muito diferente da
minha", lembra Cassiano Quilici,
42, que foi um dos muitos bolsistas da escola.
O outro paradoxo: é uma escola
religiosa que, como todas, tem a
missão de arregimentar rebanhos, mas desenvolve o espírito
crítico do aluno. Como ensinar
uma doutrina e também dar ferramentas para se duvidar dela?
"Tive aulas de catequese. Fiz
primeira comunhão lá. Acho que,
apesar da escola ser católica, isso
não é algo muito forte lá dentro.
As pessoas saem de lá com fé e
com dúvidas sobre a religião católica. Das minhas amigas de lá, nenhuma vai à igreja", diz Flávia.
"É um aparente paradoxo do
catolicismo moderno. No momento da adolescência, em que há
mais contestação, sugerimos um
deslocamento para a ação social,
voltamos o projeto para a ética e
cidadania. Temos um curso de religião para abrir a visão e a consciência política", explica Luiz
Eduardo Magalhães, diretor-geral
da escola.
"Nunca senti a mão forte da
doutrina cristã. Tínhamos como
professora de história, a famosa
Zilda, que era de esquerda e, creio
eu, não acreditava em Deus. Eu
acho que ali houve, pelo menos
no início dos anos 70, um colégio
que foi um oásis no meio da violência surda e burra da época",
lembra Tadeu Jungle, 46.
"Era uma escola que incentivava o aluno a chamar o professor
de você. O mestre era um cara a
ser ouvido e ao mesmo tempo desafiado. A escola fazia com que
você pesquisasse, em vez de dar
tudo mastigado", diz Jungle, cuja
filha estuda na escola
Nos anos 70, ensinavam-se lógica aristotélica, Hegel e Marx Weber no primeiro colegial. Em seguida, mergulhavam todos nas
experiências radicais do existencialismo, de Kafka a Sartre. Perturbava-se com Dostoievsky, o
autor dos infernos humanos.
Por fim, a escola propunha uma
saída tímida com Teilhard de
Chardin, cuja filosofia, o "neo-humanismo", encontra a síntese entre ciência e metafísica, e o autor
cristão Emmanuel Mounier. O
pensamento dialético jogava os
alunos de um lado para o outro.
"A escola oscilava entre um projeto liberal e conservador. Minha
mãe era educadora, e eu sempre
tive um espírito crítico bem aguçado quanto à questão educacional. Atormentava um pouco os
diretores com minhas críticas.
Todas eram ouvidas, e nenhuma
discutida. Os alunos tinham muito pouca participação no seu processo de aprendizagem", diz
Adriana Teixeira, 38.
Senso crítico
"Acho que o humanismo da escola, mesmo que impregnado pelo sentimento cristão, também colaborava para que as pessoas
percebessem que eram seres sociais e que tinham um compromisso com essa sociedade, não
necessariamente de reproduzi-la,
mas até de transformá-la", lembra o cineasta Roberto Gervitz, 43,
que também foi aluno bolsista.
O senso crítico aguçado persegue os ex-alunos por toda a vida.
Se há alguém que às vezes é ranzinza, cínico e tem um humor negro apurado, pode apostar, é um
ex-aluno do Santa. Bem, essa descrição se encaixa comigo, porque,
sim, sou um ex-aluno, testemunha das contradições, que se
aprofundaram durante o regime
militar: professores de esquerda,
colegas no poder.
Em 1975, os alunos viram os
professores Benauro Roberto de
Oliveira e José Salvador Faro serem levados ao DOI/Codi, acusados de pertencerem a uma célula
do PCB. Entre os alunos estavam
o filho do governador Paulo Egydio e do prefeito Olavo Setúbal,
ambos eleitos indiretamente.
"Nossa intenção sempre foi a
qualidade de ensino, empregar os
melhores professores. Havia no
país um deserto de idéias. O ministro do Trabalho da época, Murilo Macedo, reclamou que dávamos textos de Marx. E chegou a
haver uma invasão policial para
impedir a exibição de um filme.
Mas a escola tinha autoridade
moral para ousar", completa o diretor-geral Magalhães.
E ousavam. Os amigos da minha rua liam "Meu Pé de Laranja
Lima", enquanto eu lia "O Processo". Meus amiguinhos estavam
fascinados pelo filme "O Destino
de Poseidon", enquanto eu era levado pelo professor Amaury Sanches a assistir a "Teorema" (Pasolini), "Discreto Charme da Burguesia" (Buñuel), "Oito e Meio"
(Fellini) e "A Chinesa" (Godard).
As meninas
Meus amiguinhos eram atormentados pelas orações subordinadas, enquanto meu professor
Flávio Di Giorgi ensinava grego e
latim. Meus amiguinhos só queriam saber de meninas. Eu estava
me tornando um intelectual de
calças curtas, fumava, era pálido,
tinha insônia e sabia muito bem o
significado de um pensamento
dialético. Eles tomavam milk-shake. Eu tomava guaraná em pó,
para ficar acordado e estudar.
As meninas do Santa eram lindas, mas a maioria delas vivia em
crise existencial, fazia análise, tinha um olhar perdido em busca
do significado da vida. Já as meninas da rua...
Marcelo Rubens Paiva estudou no Colégio Santa Cruz de 1974 a 1976
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