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ARTIGO
Ameaça ao Estado laico
ROSELI FISCHMANN
ESPECIAL PARA A FOLHA
É INCOMPATÍVEL ligar
temas relevantes que a
Secad (Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade) desenvolve à definição de conteúdos
para o ensino religioso, tornando-o obrigatório na prática, o
que é inconstitucional. Convite
enviado a professores pelo ministério explicita a intenção ao
convidar para o que seria, ontem, "uma discussão preliminar acerca do ensino religioso
como área do conhecimento".
A complexa emenda à Lei de
Diretrizes e Bases da Educação
-aprovada antes da visita do
papa João Paulo 2º ao Brasil em
1997- não poderia revogar o
caráter facultativo do ensino
religioso para o aluno, dado pela Constituição de 1988. Por ele,
tem o aluno liberdade de matricular-se, de freqüentar ou não
as aulas, não podendo ser nem
impedido de interromper freqüência nem submetido à avaliação, mesmo quando matriculado. Qual o sentido, pois, de
conteúdos ditados pelo MEC?
Não revogaria também a laicidade do Estado brasileiro e
sua impossibilidade jurídica de
pronunciar-se em matéria de
religião. Tanto é assim que a
emenda propõe a figura de uma
entidade civil que, congregando diferentes religiões, definiria conteúdos. Seria a forma de
evitar o contato direto do Estado laico com conteúdos religiosos fora de sua alçada, contato
que agora o ministério propõe
ao dizer que "o objetivo dessa
atividade será debater possíveis contribuições do MEC para o ensino religioso".
Mesmo essa tentativa de "solução" da entidade civil não
tem como se concretizar sem
violar outro direito fundamental, a liberdade de associação, já
que qualquer religião ou denominação que quisesse ser contemplada teria obrigatoriamente de associar-se a essa entidade ou seria excluída de consideração nas escolas públicas.
O convite do MEC lembrou-me o que ouvi em setembro, no
Rio, em uma sessão do 6º Colóquio do Consórcio Latino-Americano de Liberdade Religiosa (éramos só três acadêmicos não-católicos). Apresentara meu protesto frente à exposição de estudo comparativo de
legislação sobre matrimônio na
América Latina, em que o Brasil fora apresentado como juridicamente católico, sendo suprimido dos Estados laicos por
pesquisadora católica do Chile.
Um senhor que se apresentou, então, como advogado da
CNBB e da Nunciatura Apostólica disse que estariam quase
totalmente prontos os termos
de uma concordata entre o Vaticano e o Brasil. É sabido, por
exemplo, que esse tipo de acordo para definir cooperação entre o Vaticano e outros Estados
foi assinado por Hitler e Mussolini. Afirmou ainda o advogado que a concordata seria "muito completa, com repercussões
legais, políticas, administrativas, tributárias e financeiras",
que a decisão do papa de vir ao
Brasil estaria ligada a isso.
Segundo fui informada, assinar acordos bilaterais seria
prerrogativa do presidente, cabendo ao Congresso só ratificar
ou não a medida. Sem qualquer
debate dos parlamentares ou
conhecimento da sociedade
brasileira, já que o presidente
pode simplesmente assiná-lo
-correríamos o risco de ter um
Estado religioso e peculiar, Vaticano, interferindo na vida do
Estado laico que é o Brasil, religiosa e politicamente plural.
O súbito chamamento do
MEC para tratar do ensino religioso trouxe-me eco dessa fala
-a ser esclarecida pelo presidente Lula, o que solicito-,
com igual repercussão quanto à
violação de direitos, em particular de minorias religiosas e
de todos os que têm praticado
todas as formas de liberdade de
consciência e de crença neste
país desde a República.
Roseli Fischmann é professora do Programa de
Pós-Graduação em Educação da USP e expert
Unesco para a Coalizão Internacional de Cidades
contra o Racismo e a Discriminação
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