São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Não conseguem sê-lo"


"Se os olhos corporais já estavam mortos, não o estavam os do espírito"


NA PRIMEIRA FASE do vestibular da Fuvest, realizada há pouco mais de duas semanas, a banca incluiu um teste sobre concordância. Descontextualizada e elaborada nos moldes tradicionais, a questão exigiu o domínio de algumas das normas básicas da sintaxe de concordância e de pelo menos um caso "sofisticado", raro hoje em dia, mas abundante nos clássicos.
Vamos à questão, cujo teor é este: "Quanto à concordância verbal, a frase inteiramente correta é: a) Cada um dos participantes, ao inscrever-se, deverão receber as orientações necessárias; b) Os que prometem ser justos, em geral, não conseguem sê-lo sem que se prejudiquem; c) Já deu onze horas e a entrega das medalhas ainda não foram feitas; d) O que se viam era apenas destroços, cadáveres e ruas completamente destruídas; e) Devem ter havido acordos espúrios entre prefeitos e vereadores daqueles municípios".
Não haverá espaço para a discussão dos temas implícitos em todas as frases (o que posso fazer em outra ocasião), por isso vou ater-me ao caso "sofisticado", que está na frase correta. Nada de suspense, pois; vamos logo à resposta: é "b". A "sofisticação" está na passagem "não conseguem sê-lo", em que ocorre o pronome "o", transformado em "lo", o que acontece quando esse pronome é posto depois de forma verbal que termine em "r", "s", ou "z".
E a quem se refere o pronome "o", ou seja, que termo ele substitui ou representa? Em outras palavras, se não se usasse esse pronome, isto é, se não se evitasse a repetição do termo que ele substitui, como ficaria a frase? Vamos lá: "Os que prometem ser justos, em geral, não conseguem ser justos sem que se prejudiquem".
Como você acaba de perceber, esse "o" substitui "justos" ("não conseguem ser justos" = "não conseguem sê-lo"). A esta altura, você talvez queira saber se, por isso, esse "o" não deveria ser "os". Não deveria, caro leitor. Esse "o" não é pronome oblíquo, já que não é empregado como complemento de verbo transitivo direto, o que ocorre, por exemplo, em "Não li os livros" = "Não os li".
O pronome da frase da Fuvest substitui um termo ("justos") que funciona como predicativo, ou seja, como qualificador (do sujeito, no caso). Em casos como esse, o "o" é pronome demonstrativo e, "grosso modo", equivale a "isso": "Não conseguem ser justos" = "Não conseguem ser isso" = "Não conseguem sê-lo". Desse emprego, o eminente professor Evanildo Bechara dá dois exemplos clássicos: "Se os olhos corporais já estavam mortos, não o estavam os do espírito" (de Alexandre Herculano); "...residia uma viúva que o era de um fidalgo da casa de Azevedo" (de Camilo Castelo Branco). No primeiro caso, o "o" representa "mortos"; no segundo, "viúva". Como se pôde ver, esse pronome é invariável -em gênero e em número.
Há um ano, a senadora (e governadora eleita do Pará) Ana Júlia Carepa disse estas palavras, enquanto rasgava o relatório de um integrante da CPI da Terra: "Eu disse no início que não seria cúmplice de assassinato e não vou sê-lo". O "o" ("lo") representa "cúmplice", palavra de dois gêneros, mas também ocorreria se em vez de "cúmplice" a senadora tivesse dito algo como "co-autora". É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Procurado em sua casa pela polícia, jornalista não é achado
Próximo Texto: Trânsito: Proximidade do Natal complica o trânsito na região da 25 de Março
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.