São Paulo, quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

"Eu apenas me precavi..."


"Precaver" não tem relação etimológica com "ver'; sua raiz (latina) é a mesma de "cauto, "cautela", "caução", "precaução"

ORA REAL, ORA FORÇADO, o bom humor do presidente não tem fim. Segunda-feira, ao abrir a Couromoda, Lula fez piada com a sapatada que Bush quase levou. Depois de "ameaçar" jogar um sapato nos jornalistas, Lula disse mais ou menos isto: "Eu não quis dar sapatada. Eu apenas me precavi para vocês não darem em mim".
Bastou a televisão exibir a cena para que os leitores me escrevessem para perguntar sobre o "precavi" de Lula. "Esse verbo não é defectivo?" O verbo "precaver" de fato é defectivo, mas... Mas a história não é tão simples assim. É preciso sempre ler a "bula" até o fim, para que não se chegue a conclusões indevidas.
De início, é bom dizer que verbo defectivo é aquele que não se conjuga integralmente, isto é, um verbo é considerado defectivo quando não se registra o uso de algumas de suas flexões. Mas é bom deixar claro que o "rótulo" de defectivo é dado depois que se analisa o uso, ou seja, o primeiro passo é verificar o uso, o emprego. Constatada a falta de registro de determinadas flexões de um verbo, afirma-se que ele é defectivo.
Essa análise é fundamental para que não se invertam as coisas. Para que fique claro, diga qual é a afirmação correta: a) um verbo é defectivo porque não tem conjugação completa; b) um verbo não tem conjugação completa porque é defectivo. Se você achou que eu disse a mesma coisa duas vezes, leia as afirmações de novo, por favor. Já releu? A resposta é "b", certo? Errado. É "a".
Posto isso, passemos ao segundo ponto da questão: que uso se leva em conta para que se considere defectivo um verbo? Em se tratando de dicionários, guias e manuais de uso da língua, gramáticas etc., leva-se em conta o uso culto, formal. E nesse território só se registra o emprego das formas arrizotônicas de "precaver" -todas regulares, por sinal.
Não me xingue, não! Já sei que você torceu o nariz quando leu a palavra "arrizotônicas", mas eu a usei adrede (ai!). Usei-a porque é essa a palavra que aparece em alguns dicionários quando explicam a conjugação de verbos defectivos. É rizotônica a flexão verbal cuja vogal tônica está no radical. Em "canto", a vogal tônica (o "a" da sílaba "can") está no radical ("cant-", no caso); em "cantamos", a vogal tônica (o "a" de "ta") está fora do radical. "Canto" é rizotônica; "cantamos" é arrizotônica.
Moral da história: se na língua culta só se registra o uso das formas arrizotônicas de "precaver", só se registra o uso das flexões cuja vogal tônica esteja fora de "precav-". O presente do indicativo, portanto, limita-se a "nós precavemos, vós precaveis", consequentemente o presente do subjuntivo é zero, é nada, já que esse tempo deriva da primeira do singular do presente do indicativo.
E o pretérito perfeito do indicativo, tempo da flexão empregada por Lula? É completo, já que todas as suas flexões são arrizotônicas: "precavi, precaveste, precaveu, precavemos, precavestes, precaveram".
Como se vê, a forma empregada por Lula é a registrada no padrão formal da língua. Convém dizer que, na linguagem informal e até mesmo em alguns registros formais, constata-se a presença de flexões como "(ele se) precaveio" e "(eu me) precavenho", que não são legitimadas pelos dicionários, gramáticas etc. Também convém dizer que "precaver" não tem relação etimológica com "ver" (nem com "vir"). Sua raiz (latina) é a mesma de "cauto", "cautela", "caução", "precaução". É isso.

inculta@uol.com.br



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