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MOACYR SCLIAR
Sonhos de Carnaval
E aí fez a proposta à mulher: quatro dias de liberdade completa e total para cada um fazer o que bem entendesse
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Rosas de Ouro mostra fábrica de sonhos
no Carnaval de São Paulo. Folha Online
OS DOIS estavam casados há
muito tempo, os dois conviviam diariamente: trabalhavam no mesmo lugar, uma grande
fábrica de produtos esportivos; ele
era gerente de produção e ela chefiava a contabilidade. E os dois não
eram muito de Carnaval; na verdade, durante os dias da folia levavam
trabalho para casa e ficavam horas
fazendo cálculos e escrevendo relatórios. A fábrica era a vida deles.
Até que ele leu a notícia sobre o tema de desfile escolhido pela escola
Rosas de Ouro: fábrica de sonhos.
Aquilo lhe deu uma ideia, tão inquietante quanto tentadora. Hesitou
muito antes de apresentá-la à esposa; mas, por fim, concluiu que, se oito anos de convivência não permitiam a qualquer um dos dois ser
franco e expor desejos secretos, o
melhor seria a separação. Coisa na
qual aliás pensava às vezes, e ela, disso ele tinha certeza, também.
Afinal, não tinham filhos e não seria difícil, para nenhum dos dois, recomeçar a vida com outra pessoa.
Uma ideia que não levavam em frente, porque se amavam, mas nada impedia que aproveitassem o Carnaval
para uma separação temporária.
E aí fez a proposta à mulher: quatro dias de liberdade completa e total para cada um fazer o que bem entendesse, com quem bem entendesse, guardando sigilo absoluto. Cada
um dos dois mandaria fazer uma
fantasia e, sem contar ao outro que
fantasia seria essa, sairiam para
brincar no Carnaval.
A esposa era um pessoa séria, reservada; poderia até reagir mal à
ideia. Mas, para surpresa dele, não
foi isso que aconteceu. Pelo contrário, ela disse que há muito tempo
pensava em algo semelhante e que
estava, sim, de acordo em partir para
uma aventura carnavalesca. Combinaram que tomariam em segredo as
providências, sem nada revelar.
No sábado cada um partiu para
seu lado, ele de carro, ela de táxi. Ele
foi até o ateliê onde tinha mandado
confeccionar a sua fantasia, chamada (verdade que sem muita originalidade) de Avatar. Iria vestido como
se fosse um extraterrestre, usando
uma máscara que lhe ocultava o rosto. Colocou a fantasia e foi direto para a avenida, misturando-se aos foliões. Mulheres belíssimas por ali;
uma excitante promessa de grandes
orgias. Aparentemente era só escolher, e ele foi andando sem pressa.
De repente, porém, parou. É que
tinha avistado, a alguma distância,
uma mulher sambando no asfalto.
Como ele, estava vestida de extraterrestre; como ele, usava uma máscara. A coincidência propiciava a
aproximação; tudo que ele tinha a
fazer era perguntar a ela algo como
"Sua fantasia também se chama
Avatar?"
Mas não fez. Por uma razão simples: de repente deu-se conta de que
aquela só podia ser sua mulher. Afinal, os dois pertenciam à mesma fábrica de sonhos, os dois sonhavam, e
imaginavam, igual.
Passou no ateliê, que ainda estava
aberto, e lá deixou a fantasia: presente para algum folião pobre. Voltou para casa. Duas horas depois a
mulher também voltou. Sem fantasia. Num impulso, caíram nos braços um do outro. Foi uma noite memorável aquela. Uma noite em que
os mais selvagens sonhos se transformaram em realidade.
MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na
Folha .
moacyr.scliar@uol.com.br
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