São Paulo, segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

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MOACYR SCLIAR

Sonhos de Carnaval


E aí fez a proposta à mulher: quatro dias de liberdade completa e total para cada um fazer o que bem entendesse

Rosas de Ouro mostra fábrica de sonhos no Carnaval de São Paulo. Folha Online

OS DOIS estavam casados há muito tempo, os dois conviviam diariamente: trabalhavam no mesmo lugar, uma grande fábrica de produtos esportivos; ele era gerente de produção e ela chefiava a contabilidade. E os dois não eram muito de Carnaval; na verdade, durante os dias da folia levavam trabalho para casa e ficavam horas fazendo cálculos e escrevendo relatórios. A fábrica era a vida deles.
Até que ele leu a notícia sobre o tema de desfile escolhido pela escola Rosas de Ouro: fábrica de sonhos.
Aquilo lhe deu uma ideia, tão inquietante quanto tentadora. Hesitou muito antes de apresentá-la à esposa; mas, por fim, concluiu que, se oito anos de convivência não permitiam a qualquer um dos dois ser franco e expor desejos secretos, o melhor seria a separação. Coisa na qual aliás pensava às vezes, e ela, disso ele tinha certeza, também.
Afinal, não tinham filhos e não seria difícil, para nenhum dos dois, recomeçar a vida com outra pessoa. Uma ideia que não levavam em frente, porque se amavam, mas nada impedia que aproveitassem o Carnaval para uma separação temporária.
E aí fez a proposta à mulher: quatro dias de liberdade completa e total para cada um fazer o que bem entendesse, com quem bem entendesse, guardando sigilo absoluto. Cada um dos dois mandaria fazer uma fantasia e, sem contar ao outro que fantasia seria essa, sairiam para brincar no Carnaval.
A esposa era um pessoa séria, reservada; poderia até reagir mal à ideia. Mas, para surpresa dele, não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, ela disse que há muito tempo pensava em algo semelhante e que estava, sim, de acordo em partir para uma aventura carnavalesca. Combinaram que tomariam em segredo as providências, sem nada revelar.
No sábado cada um partiu para seu lado, ele de carro, ela de táxi. Ele foi até o ateliê onde tinha mandado confeccionar a sua fantasia, chamada (verdade que sem muita originalidade) de Avatar. Iria vestido como se fosse um extraterrestre, usando uma máscara que lhe ocultava o rosto. Colocou a fantasia e foi direto para a avenida, misturando-se aos foliões. Mulheres belíssimas por ali; uma excitante promessa de grandes orgias. Aparentemente era só escolher, e ele foi andando sem pressa.
De repente, porém, parou. É que tinha avistado, a alguma distância, uma mulher sambando no asfalto.
Como ele, estava vestida de extraterrestre; como ele, usava uma máscara. A coincidência propiciava a aproximação; tudo que ele tinha a fazer era perguntar a ela algo como "Sua fantasia também se chama Avatar?"
Mas não fez. Por uma razão simples: de repente deu-se conta de que aquela só podia ser sua mulher. Afinal, os dois pertenciam à mesma fábrica de sonhos, os dois sonhavam, e imaginavam, igual.
Passou no ateliê, que ainda estava aberto, e lá deixou a fantasia: presente para algum folião pobre. Voltou para casa. Duas horas depois a mulher também voltou. Sem fantasia. Num impulso, caíram nos braços um do outro. Foi uma noite memorável aquela. Uma noite em que os mais selvagens sonhos se transformaram em realidade.


MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha .

moacyr.scliar@uol.com.br


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